O Brasil é da Direita (III): Ruralistas

O Brasil é da Direita (III): Ruralistas

Com esta terceira edição da série “o Brasil é da Direita” encerra-se a tríade sobre as forças políticas que vêm ganhando mais protagonismo no governo Bolsonaro do que em qualquer outro mandato presidencial eleito desde 1989. Não por acaso, as Forças Armadas, as Igrejas e os Ruralistas representam e sempre defenderam o que há de mais retrógrado no capitalismo brasileiro. O agronegócio é um setor que responde por cerca de 40% da balança comercial do país e não aprecia limites jurídicos, trabalhistas ou ambientais, tampouco qualquer tentativa de regulamentação de sua enorme cadeia produtiva, que envolve milhares de proletários no desenvolvimento e produção de insumos agrícolas, máquinas para produção, colheita, processamento e transporte dessas mercadorias.

Como qualquer outro ramo do capitalismo, o agronegócio, muitas vezes representado por empresas transnacionais, possui uma íntima relação com as instâncias do Estado que determinam os rumos das grandes e médias (indústrias) e pequenas propriedades rurais. Sendo o governo Bolsonaro um defensor da desregulamentação de toda atividade econômica e defensor de toda violência armada que garanta a paz da burguesia, os ruralistas encontraram um governo para chamar de seu. Só no Congresso Nacional, ao menos 30% dos senadores e 40% dos deputados federais integram a Frente Parlamentar Agropecuária. Dela saíram os nomes indicados para os principais cargos da imensa estrutura burocrática do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e Secretarias correlatas, além de mega-empresários do setor, sendo a cereja do bolo a nomeação do presidente da União Democrática Ruralista (UDR) para a Secretaria de Assuntos Fundiários, pasta responsável pela reforma agrária e pela identificação e demarcação de terras indígenas e quilombolas.

Os interesses do agronegócio no governo Bolsonaro

No censo agrícola de 2006 as terras destinadas à produção agrícola somavam 39% do território nacional, sendo que o tamanho médio das propriedades era de 64 hectares. Uma década depois, 41% do território é ocupado por terras cultiváveis, um crescimento de 2%. No entanto, o tamanho médio das propriedades passou para 69 hectares. Assim, 77% de todas as terras cultiváveis são controladas pelo agronegócio, que representa 35% dos estabelecimentos agrícolas do país. Há claramente um processo de monopolização da propriedade fundiária, exatamente no período de um governo ora acusado, ora defendido, por fazer reforma agrária. Quer dizer, mente o lado que acusa, mente o lado que defende.

Com Bolsonaro no poder, os capitalistas rurais recebem um apoio inédito do Estado, seja na ausência de fiscalização, seja no fomento a práticas ambientais e trabalhistas que remontam ao século XIX, uma oportunidade única de “passar a boiada”. Como exemplos do auxílio governamental podemos citar a MP 910, “MP da grilagem”, que prevê a regularização de terras públicas sem vistoria, com “autodeclaração” do interessado, em uma área com até 2.500 hectares. A bancada ruralista apoia a iniciativa do governo, assim como a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), enquanto ambientalistas, o Ministério Público Federal e setores do Congresso a criticam. Agora, a palavra mágica “desenvolvimento sustentável” já está na boca até mesmo de Mourão e Bolsonaro, especialmente devido às pressões internacionais. Essa MP prevê a regularização de terras por empresas e caso um posseiro conquiste o direito de regularizar sua terra, para que a regularização seja efetivada é preciso ter recursos para gastos com cartórios, impostos, dentre outros. Em regra essas pessoas não possuem estes recursos, necessitando recorrer aos empréstimos bancários para viabilizar a legalização da posse e a produção. O mais provável é que essas terras rapidamente caiam novamente nas mãos dos grandes proprietários, que têm capital acumulado para fazer essas aquisições e o posseiro se torne um proletário rural. Este processo pode ser caracterizado como um caso tardio de acumulação primitiva e também como abertura para mais um ciclo de concentração da terra, obedecendo aos mesmos princípios do capitalismo avançado e monopolista.

A que conduz a acumulação primitiva do capital, isto é, sua gênese histórica? Na medida em que ela não é a transformação direta de escravos e servos em trabalhadores assalariados, portanto, mera mudança de forma, significa apenas a expropriação dos produtores diretos, isto é, dissolução da propriedade privada baseada no próprio trabalho.” — Karl Marx

Além disso, acentuou-se a desregulamentação do uso de agrotóxicos no Brasil e houve um afrouxamento na fiscalização e nas multas em relação ao uso e comercialização. Em julho de 2019 foi aprovado um novo padrão de classificação dos riscos dos agrotóxicos nas embalagens: pesticidas com alto grau de toxidade terão menos alertas nos rótulos, serão retiradas as faixas vermelhas e as ilustrações de caveiras. 16% dos produtores que usam agrotóxicos não sabem ler nem escrever, e 70% dos que manipulam agrotóxicos têm no máximo o ensino fundamental. Some-se a isso as medidas de revisão das Normas Regulamentadoras 01 e 12 e a revogação da NR 02 por Bolsonaro. A NR 01 retira a obrigatoriedade de treinamento em mudança de emprego, já por meio da NR 12 foi retirada a obrigatoriedade de aplicar 30% do valor da compra de um equipamento em adequações. E a revogação NR 02 desobriga a visita de um auditor fiscal do trabalho para abertura de novas empresas.

Bolsonaro também deseja a revogação da Emenda Constitucional 81/2014, que prevê o confisco de propriedade de condenados por trabalho escravo. Os capitalistas do setor financeiro já se manifestaram contrários à proibição de liberação de créditos para quem foi condenado por trabalho escravo e desmatamento, apesar de suas amplas campanhas de sustentabilidade. Além disso, em favor dos capitalistas do agronegócio, o governo tem sistematicamente certificado fazendas em cima de Terras Indígenas (TIs) na Amazônia Legal. Desde 2019 foram 42 fazendas certificadas de maneira irregular, contrariando as proteções a essas terras previstas desde 2012 pela Funai. Atualmente há mais de 2 mil propriedades privadas que incidem em áreas indígenas em sete estados da Amazônia — 500 delas sob territórios onde vivem indígenas isolados.

Por um lado o governo ajuda armar um verdadeiro barril de pólvora e por outro vem desmontando os órgãos de fiscalização do trabalho e ambiental. Sem mediação dos órgãos fiscalizadores, os conflitos tornam-se mais violentos, tendo de um lado grandes ruralistas e, do outro, pequenos proprietários, proletários rurais, indígenas e quilombolas. Esta realidade nos ajuda a entender o motivo pelo qual a pauta do armamento tem tanto acolhimento pela população das áreas rurais. 1938 pessoas foram assassinadas entre 1985 e 2018 devido aos conflitos no campo, desses casos 92% continuam impunes. Cenário que tende a aumentar com as portarias e decretos assinados por Bolsonaro que flexibilizam ou facilitam os acessos às armas e circulação de munições. Mas a relação antagônica se dá também devido aos altos custos para obter uma arma legalizada, o que se torna algo inviável para um proletário rural, não raramente submetido a condições análogas à escravidão. Assim como nos centros urbanos, a lógica do milicianato burguês é tolerada e incentivada no meio rural.

Ela compreende uma série de métodos violentos, dos quais passamos em revista apenas aqueles que fizeram época como métodos de acumulação primitiva do capital. A expropriação dos produtores diretos é realizada com o mais implacável vandalismo e sob o impulso das paixões mais sujas, mais infames e mais mesquinhamente odiosas. A propriedade privada obtida com trabalho próprio, baseada, por assim dizer, na fusão do trabalhador individual isolado e independente com suas condições de trabalho, é deslocada pela propriedade privada capitalista, a qual se baseia na exploração do trabalho alheio, mas formalmente livre” — Karl Marx

A agricultura familiar não é a solução para a luta dos proletários do campo

O PT tem sua origem vinculada aos movimentos sociais e também uma promessa de reforma agrária o levou ao poder. Por mais que tenha abdicado de suas bandeiras históricas, preserva a identidade com o sindicalismo da CUT e com a luta do MST. Apesar dessa relação ser caracterizada pela cooptação de seus dirigentes para projetos de conciliação de classes – pacto entre capital e trabalho que desmobiliza as lutas proletárias autênticas – há setores do capitalismo que nunca viram essa associação com bons olhos. Assim, ações moderadoras de parlamentares da social democracia exigindo maior fiscalização das atividades produtivas no campo, imperativo de um capitalismo internacionalmente consequente, tanto em relação às condições de trabalho como às questões ambientais (recursos naturais estratégicos para manutenção da atual ordem), desagradam este mesmo grupo de capitalistas.

Setores dos movimentos sociais “camponeses” (Via Campesina) ligados à esquerda do capital defendem a agricultura familiar como uma alternativa ao agronegócio e ao latifúndio monocultor. Essa reforma agrária é a mera democratização do capitalismo no campo, transformando um grande proprietário em centenas de pequenos, permanecendo a mesma relação social. O pequeno produtor também anseia por se tornar um grande proprietário de terras, sendo ele mesmo um pequeno explorador de força de trabalho, quando a sua família já não dá conta de garantir a produção. Esse modelo de pequena propriedade está descartado pelo capitalismo em nível global, já que tem dificuldade de produção em grande escala e as mercadorias agrícolas se tornaram commodities, ou seja, tem seu valor cotado em dólar e seu preço é regulado pela demanda e oferta global. Dessa forma, a propriedade no campo deixa de ser caracterizada pelo seu proprietário, o fazendeiro, e se torna um modelo empresarial na forma de uma corporação aos moldes tradicionais, e com expressiva parte dessas empresas tendo seu capital aberto e operando em bolsa de valores. A natureza do processo de acumulação capitalista é determinante a ponto de o MST lançar recentemente um fundo de investimento chamado Finapop, operando no mercado financeiro. Nas palavras de João Pedro Stédile, o fundo vai ajudar a aumentar a produtividade das cooperativas do MST.

Diante do exposto, fica evidente que a oposição à indústria rural não pode ser feita por capitalistas ecológicos, sejam grandes ou pequenos, mas sim pela organização ativa dos proletários rurais, rumo à socialização global da terra.