Nos últimos anos, as igrejas aumentaram sua participação na vida pública para ocupar lugares na mídia, cultura e política. Com isso, assistimos à perda gradual da laicidade do Estado, uma vez que, fortemente influenciados por preceitos fundamentalistas, católicos e protestantes têm sido eleitoralmente mobilizados por setores obscurantistas, sobretudo em temas relacionados diretamente à questão da fé e das convicções religiosas, como o direito ao aborto, a aceitação das relações homoafetivas e o ensino confessional nas escolas estatais. Ao mesmo tempo, de maneira generalizada, as religiões agem como instrumento de controle da subjetividade dos indivíduos, atuando em perfeita consonância com o capitalismo: enquanto este controla a vida material, a religião incorpora na consciência dos trabalhadores a aceitação da sua condição de vida, seja como uma forma de pagar por supostos pecados passados ou pela crença de um paraíso após a morte. Ou seja, as desigualdades são parte de um plano divino maior que “escreve certo por linhas tortas”.
No governo Bolsonaro, como temos mostrado na série do Boletim Batalhar “O Brasil é da Direita”, encontramos a presença das igrejas como um dos seus eixos de apoio: por um lado, membros das forças armadas, por outro, o apoio de inúmeras organizações religiosas que legitimam ideologicamente seu discurso “tradicionalista” de apoio à violência reacionária. Nesse cenário de apoios e negociações, Bolsonaro mistura charlatanismo religioso conservador e retórica anticorrupção que servem apenas como um veículo para popularizar ao extremo uma agenda economicamente liberal que fragiliza ainda mais a condição de vida do proletariado. Assim, da mesma forma como Bolsonaro negocia com o centrão, está negociando com líderes religiosos, se propondo a atender às suas demandas. Se o governo bate recordes de insatisfação, continua com uma parcela importante de apoiadores da ala religiosa.
Os Evangélicos
Uma função importante das igrejas pentecostais e neopentecostais (uma variante mais carismática e apegada à teologia da prosperidade) é a interceptação e cooptação de uma rede de solidariedade construída por parte da classe proletária com baixo acesso à assistência estatal e desprezada tanto pela esquerda tradicional quanto pela burocracia sindical. Isso se dá porque o segmento evangélico tem uma grande capilaridade entre a população, uma vez que é composto por centenas de igrejas sem comando verticalizado (como é o caso da Igreja Católica). Nesse sentido, mesmo em locais com pouca infraestrutura e de difícil acesso, pequenas igrejas se instalam e assumem funções importantes na vida social local, ocupando lacunas deixadas pelo Estado e pela Igreja Católica. A estrutura inicialmente simples, as cadeiras de plástico e as portas sempre abertas dialogam de forma direta com a população. Além disso, os pastores têm um perfil social próximo ao do seu “rebanho” e falam de uma maneira objetiva sobre assuntos que os interessam, tais como família, casamento, violência, uso de drogas, desemprego, doenças, etc. Assim, prometem ajudar seus fiéis a superar dificuldades diversas. Nessa perspectiva, os pastores atuam de forma mais progressista que os setores da esquerda tradicional, uma vez que entendem suas “ovelhas” como sujeitos de complexa vida social, enquanto aqueles as qualificam pejorativamente como “alienadas”. Ou seja, essas igrejas dão respostas subjetivas à materialidade da vida do proletário religioso, ao mesmo tempo em que objetivamente promovem redes de apoio material entre seus fiéis com oportunidades de emprego e clientela. Fornecem assim, de forma policlassista e ideológica, um esboço de ajuda mútua e comunitária típica das organizações autônomas do proletariado.
Com Bolsonaro, essas igrejas têm pela primeira vez um Presidente e parte considerável dos Ministérios para chamar de “seus”, unindo duas coisas que são caras aos líderes evangélicos: poder e privilégios concedidos pelo Estado. No último ano, a Secretaria Presidencial de Comunicação (Secom) gastou mais de R$ 30 milhões em campanhas transmitidas no rádio e na televisão por líderes religiosos que apoiam o governo. Outra forma de repasse de verbas estatais vem ocorrendo durante a pandemia do Coronavírus. Como resposta à escassez de unidades de atenção primária, a Portaria 1.444/2020 do Ministério da Saúde prevê o financiamento de adaptações de centros comunitários já existentes para esse atendimento, incluídas instalações dominadas por evangélicos e milicianos.
“Qualquer dimensão da atividade humana surge em resposta a determinadas necessidades. Quanto mais profundas e amplas essas necessidades, mais arraigado será o tipo de atividade que lhes dará resposta. Deste modo, a continuidade ou o desaparecimento de determinado tipo de atividade terá como pré-condição a continuidade ou o desaparecimento da necessidade que lhe deu origem.” — Ivo Tonet
Comunidades Terapêuticas
Na teoria, uma Comunidade Terapêutica precisaria oferecer, entre outras coisas, acolhimento apenas voluntário, garantia de direitos básicos, como liberdade religiosa e acesso ao mundo externo, acompanhamento individual, atendimento multidisciplinar, ligação com a rede pública de saúde e fiscalização frequente. No entanto, a verdade é que elas se baseiam numa equação muito simples: uma falsa epidemia de vício em drogas acrescida de inúmeras internações compulsórias (amparadas pela lei atual) que resultarão numa fonte de lucro estupendo para a administração de tais comunidades, massivamente vinculadas às igrejas neopentecostais. Esse esquema obscurantista de demonização das drogas, defesa da criminalização e internação compulsória se revela um grande negócio para essas religiões.
Nestas comunidades, as arbitrariedades são muitas. É comum não haver nenhum psicólogo ou médico responsável, sendo o “processo de recuperação” concebido por funcionários que, mesmo bem intencionados, podem prejudicar o quadro do paciente. Há ainda diversos abusos camuflados de tratamento. Entre as já apuradas pelo MPF e Conselhos de Psicologia destacam-se a prática de trabalho forçado e de situações análogas à escravidão, chamadas de laborterapia. A força de trabalho dos internos costuma ser usada para serviços de limpeza, preparação de alimentos, manutenção, vigilância e, em alguns casos, até mesmo no controle e aplicação de medicamentos a outros internos. Há ainda casos de cárcere privado, punições e indícios de tortura — desde a obrigatoriedade de execução de tarefas repetitivas à perda de refeições e violência física, violação à liberdade religiosa e à diversidade sexual, internação irregular de adolescentes e uso de castigos. Ao perceberem usuários de drogas como pessoas doentes, imorais e delinquentes, as CTs consideram imperativo não só colocá-los em abstinência, mas reeducá-los para uma nova inserção na vida social com base nos valores do trabalho, da disciplina, da família e da religião. No entanto, o objetivo é mesmo a verba que o governo destina para estas instituições — algo em torno de 300 milhões de reais. A participação das comunidades terapêuticas (CTs) na Política Nacional sobre Drogas vem se tornando o principal mecanismo de combate à dependência química da gestão Bolsonaro. Mas, como já apontamos no #BB41, essa política foi iniciada por Dilma Rousseff (PT).
“O fundamento da crítica religiosa é: o homem faz a religião; a religião não faz o homem. A religião é a autoconsciência do homem que ou ainda não se adquiriu a si mesmo ou se tornou a perder.” — Karl Marx
Os Católicos
Por vezes esquecida dos debates acerca do cenário político, a Igreja Católica representa um importante elemento para a manutenção do capitalismo. Nesse sentido, é válido relembrar a bênção a todos os fascismos do século XX e à Ditadura Militar de 1964-1985. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade, decisiva como suporte ideológico ao movimento militar, evidenciava tais laços, uma vez que a Igreja atuou fortemente na organização das manifestações. Os católicos são em sua essência anti-comunistas. Papa Pio XI (reiterado por tantos outros) enfatiza: “Socialismo religioso, socialismo católico são termos contraditórios: ninguém pode ser ao mesmo tempo bom católico e verdadeiro socialista”. Assim, ao contrário do que a “esquerda” religiosa costuma afirmar, a Igreja Católica não é mais progressista por contar com um segmento inexpressivo dentro da instituição de adeptos à Teologia da Libertação, que nasce precisamente para combater de perto o avanço do comunismo no século XX, e de um atual papa populista com ampla rejeição interna.
Nesse contexto, mesmo de forma mais discreta e sutil (símbolos, festas e feriados), historicamente a Igreja Católica esteve presente na tomada de decisões da esfera política. Com Bolsonaro, líderes católicos observaram um protagonismo da Igreja Evangélica e não tardaram a negociar lobby com empresários e propagandear em seus canais de radiodifusão e televisão publicidade do Estado em troca de verbas.
É ingenuidade supor que religião e política são assuntos que não se misturam. As igrejas e as doutrinas religiosas que embasam suas crenças não são apolíticas, mas sim perpassadas pelos conflitos de classe presentes num determinado contexto histórico e social. A realidade confirma que as doutrinas religiosas, formadas a partir de uma verdade revelada em textos “sagrados”, têm sua leitura e interpretação feita a partir do olhar de quem as lê — em regra, integrantes ou amigos da classe dominante. Nesse sentido, a História nos prova que as religiões sempre foram instrumentos políticos a serviço dos interesses das elites para explorar e pacificar as diversas insatisfações do proletariado, sempre representando um obstáculo para a consciência de classe e para a auto-organização.♟