Desde 7 de Outubro, os mortos em Gaza chegam a 30.000, e feridos a mais de 70.000. Massacres são cometidos diariamente fazendo avançar o extermínio que se abate sobre o povo Palestino. Equipes de resgate enfrentam dificuldades para chegar aos soterrados. 85% da população de Gaza está deslocada, com escassez de bens essenciais. Israel planeja uma ofensiva terrestre em Rafah, na fronteira com o Egito, onde 1,4 milhões buscam refúgio. Chama a atenção o número de quase 150 jornalistas assassinados, em clara política de impedir a divulgação do genocídio.
Além desse terror, grande parte da infraestrutura palestina foi afetada. Mais de 22.000 residências, 90 instituições educacionais, 19 centros de saúde, dezenas de ambulâncias e 70 indústrias destruídas ou reduzidas a pó. O mundo assiste em choque um genocídio em pleno século 21, e a inevitável questão emerge com mais força do que nunca: Qual solução pode colocar um fim definitivo a esta carnificina?
Para indicar um caminho para a questão palestina sem cair em armadilhas e contradições, é preciso equipar-se com as armas da crítica e analisar as condições materiais e históricas desta nação e dos povos que ali habitam. A questão da libertação nacional, ou autodeterminação dos povos esteve sob os holofotes do movimento comunista há pelo menos um século. Protagonizado por dois dos mais célebres revolucionários de seu tempo, Vladimir Lênin e Rosa Luxemburgo, a polêmica marca posições antagônicas até hoje. Diferentes campos da esquerda – comunista, bolchevique, social-democrata, anarquista, etc. – apresentam diferentes soluções para a questão. Nesta edição nos ateremos a examinar a posição da esquerda comunista quanto à questão palestina.
Tudo ou Nada?
Compreensivelmente, a posição que defende a criação de um Estado palestino é vista com cautela – ou mesmo aversão – por frações da esquerda comunista internacional, uma vez que a defesa da libertação nacional implica no estabelecimento de uma nova relação de opressão, sendo que não há Estado sem o estabelecimento de uma burguesia nacional, aristocracia ou classe gestorial sofisticada o suficiente para levar a cabo a sua tarefa histórica: a exploração irrestrita do proletariado.
Esta posição formula sua crítica à ideia de criação de um Estado nacional em países dominados pelo colonialismo e imperialismo expondo as experiências históricas destes países que através de revoltas nacionais em nome do comunismo, hoje, embora soberanos politicamente, ainda estão subjugados economicamente pelo capitalismo global (imperialismo).
Como corretamente defendido nesta posição, a Angola sob o Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA) livre do domínio colonial português (1975), o Vietnã, reunificado sob um governo marxista-leninista após a guerra (1975) e a Iugoslávia libertada da ocupação do eixo pelo movimento dos partisans (1946), são exemplos históricos que comprovam o fato que libertação nacional não conduz ao comunismo. Ao contrário, estes países desenvolveram suas próprias instituições de opressão e extração da mais-valia do proletariado, seja no formato do Capitalismo de Estado (coordenado pela classe gestorial), ou no tradicional Capitalismo de Mercado (dirigido pela burguesia).
Como alternativa à tática da libertação nacional, apresentam uma solução internacionalista subvertendo o conflito “colonizador versus colonizado” pelo conflito “explorador versus explorado”. Desta forma a luta de classes retornaria ao foco e o comunismo se tornaria um resultado possível deste conflito. Reorganizar o confronto pela perspectiva da luta de classes significa apoiar: a) a iniciativa autônoma da classe proletária; b) comitês proletários em luta ativa nos locais de trabalho contra cortes salariais, aumento da jornada de trabalho ou a imposição de trabalho forçado devido à guerra; c) lutas organizadas da classe proletária contra a conscrição (recrutamento forçado), e d) Apoio aos integrantes da classe que desertarem da guerra. Por esta perspectiva também se faz necessário disseminar a necessidade de ações de sabotagem da indústria da guerra, e uma colaboração inabalável com proletários de ambos os lados em nome do internacionalismo.
Contra a posição marxista-leninista que defende um apoio absoluto ao colonizado, todas as táticas autogestionárias mencionadas acima são legítimas. Entretanto aqui está a grande armadilha desta posição internacionalista: negligenciar o contexto no qual o conflito se apresenta. Dada a conjuntura do genocídio palestino, esta posição não se aplica. Vamos analisar esta proposta mais atentamente e compreender sua lógica e limitações.
“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.” — Karl Marx
Evitar o Etapismo e o Principismo
É consenso que certas condições materiais e subjetivas preexistentes são necessárias para que as velhas estruturas capitalistas sejam suplantadas por uma nova ordem social comunista. Entretanto, apegar-se a esta premissa de forma dogmática é submeter-se ao etapismo. Não podemos ignorar que em algumas ocasiões, dadas as circunstâncias materiais e subjetivas, é possível que o proletariado de um país ou região ensaie algumas instituições de transição para o comunismo em bolsões de capitalismo tardio. No entanto, não sustentarão tais práticas por muito tempo se o isolamento geográfico persistir.
A superação do capitalismo não se dará apenas pela mudança radical das relações sociais de produção, mas também pelo desenvolvimento das forças produtivas. No caso da Palestina atual, de que serviriam as práticas de autogestão sugeridas pela posição internacionalista diante da impossibilidade de reprodução da vida material? Afinal, de que adiantaria socializar a miséria? Adicione-se a isso o gigantesco retrocesso das lutas proletárias em nível mundial, impedindo qualquer solidariedade orgânica que os ajudasse a resistir de forma auto-organizada em meio aos bombardeios. E a proposta não menciona o fato da ideologia do sionismo penetrar em boa parte na subjetividade do proletariado sob o Estado de Israel.
Imaginar que é possível construir uma posição política apenas fazendo uma transposição de princípios teóricos para a realidade, sem qualquer adaptabilidade – a ponto de adotar uma posição que defende “ou comunismo ou nada” em uma conjuntura de total massacre – é, por um lado, uma política doutrinária inteiramente estéril, e, por outro, uma irresponsabilidade de correntes da esquerda comunista. Em situações como a da Palestina, os comunistas devem sempre elaborar políticas de solidariedade ativa ao proletariado naquele território, sem perder de vista o equilíbrio entre táticas imediatas e objetivos revolucionários de longo prazo.
Mesmo na hipótese de que, sob a condição de terra arrasada, com a solidariedade de seus irmãos de classe de todos os países (desconsiderando o refluxo revolucionário mundial), o proletariado na Palestina conseguisse se organizar e construir instituições autônomas proletárias, elas não sobreviveriam aos ataques impiedosos do imperialismo em resposta, como ocorreu na Comuna de Paris (1871), Rússia (1917-20) ou Chile (1972-73).
“Não há realidade social senão institucionalizada. As instituições são o elemento definidor da realidade social. A realidade social é um processo permanente de criação de instituições.” — João Bernardo
Adotar o Princípio do Institucional para defender posições materialistas
Desconsiderada a proposta do “tudo ou nada”, a consolidação de um Estado palestino laico e democrático do Rio Jordão até o Mar Mediterrâneo seria um ponto de partida. O Sistema de Conselhos Proletários (SCP) é a única forma institucional que pode, ao mesmo tempo, realizar a revolução proletária mundial e administrar a sociedade comunista, porém essas instituições não vão surgir em meio a escombros. O SCP só pode emergir com a força necessária para efetivar a revolução em um contexto de franco conflito de classe, que por sua vez só pode vir à tona na existência de uma mínima estabilidade institucional capitalista consolidada na Palestina.
Organizações históricas como a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), tentam há décadas consolidar um estado Palestino frente ao colonialismo israelense. Apesar de necessária, esta não é uma tarefa comunista, mas uma tarefa não realizada pelos capitalistas e que impede a emancipação proletária na região. Para construir uma sociedade sem classes, com abundância de recursos e tempo livre, serão necessárias fábricas, escolas, universidades, hospitais, tudo o que foi reduzido a pó por Israel. A vida sob o capitalismo é o ponto de partida para sua superação. As instituições do capital dominam o planeta, tanto que para fugir dos locais de conflito os palestinos se refugiam em outros Estados capitalistas.
Assim, é legítima a criação de um Estado palestino laico, possibilitando uma união de todos os proletários daquele território, dada a urgência do fim da carnificina em curso. Sustentar uma posição ideal no plano teórico serve apenas a quem acompanha tudo de longe, ignorando a realidade material de tentativa de extermínio de toda uma população, algo como sugerir brioches aos que sequer comem pão. ♟