O Governo Bolsonaro e a saúde mental do proletariado

O Governo Bolsonaro e a saúde mental do proletariado

Em fevereiro último, o Ministério da Saúde lançou a Nota técnica N° 11/2019, intitulada “Nova saúde mental”. Esse documento faz retroceder a abordagem das intervenções psiquiátricas no país e a Reforma Psiquiátrica, pois prevê a ampliação de leitos em hospitais psiquiátricos (manicômios) e comunidades terapêuticas, além da compra de aparelhos de eletrochoque. Ou seja, se a política anterior visava integrar os indivíduos na sociedade, essa nova política objetiva encarcerá-los e isolá-los do convívio social, dando brechas para o uso indiscriminado dos aparelhos de eletrochoque que levam a sequelas irreparáveis. As justificativas “técnicas” e “contábeis” servem de ideologia para legitimar a transferência de recursos do Estado para igrejas e ampliar as possibilidades de repressão a opositores políticos.

Existe uma relação direta entre condições de vida, moradia, lazer e trabalho com as doenças desde as civilizações antigas. Acesso à água potável e ao saneamento básico, por exemplo, são ainda hoje as principais medidas ambientais usadas para combater doenças infecto-parasitárias. Foram essas doenças que, no início do capitalismo, levavam o proletariado a faltar ao trabalho como também eram a principal causa de morte. Ciclos de epidemias eram comuns (ex: epidemias de Varíola no Brasil até o início do século XX). Mas apesar da necessidade do capitalismo oferecer condições para que sua força de trabalho não adoeça, a abordagem dos determinantes da saúde ainda é conservadora, pois não alcança as estruturas que geram sofrimentos — físico e mental — e a exploração proletária. Sem combater a existência da exploração, a reestruturação produtiva do capital reduziu drasticamente algumas doenças, mas favoreceu o aumento de outras: enquanto o fordismo aumentou as LER/DORT pela intensificação física da extração de mais-valia relativa, o toyotismo levou a saúde mental do proletariado ao seu limite.

Diante dessa realidade, abordar as determinações de uma perspectiva anticapitalista significa atribuir importância a fenômenos subjetivos e materiais, muitas vezes imensuráveis, que intensificam o desgaste e adoecimento mental da pessoa proletária: processos de competição intraclasse, terceirização (e consequente fragilização), aumento da intensidade no processo de trabalho com auxílio de novas tecnologias (mais-valia relativa), jornadas abusivas, avaliações competitivas e individuais de desempenho, metas, etc., figuram entre as principais causas dos adoecimentos. Além disso, o isolamento dos trabalhadores e o esfacelamento de seus coletivos, identidades coletivas, redes e relações de ajuda mútua e solidariedade, caracterizam o atual mundo do trabalho.

Apenas para fins didáticos, suponhamos que fosse possível separar o físico do mental. Perceberemos que os fatores que influenciam e determinam o processo de adoecimento físico são mais fáceis de detectar. Médicos são formados para identificar objetivamente os fatores etiológicos (aquele que investiga a causa ou origem de algo) e adotar a conduta mais adequada. Com a saúde mental não ocorre assim. Sempre se baseou em análises de padrões de comportamento, mesmo que os objetivos sejam analisar nossos sentimentos e a forma que nos relacionamos com eles. Adotar a análise de comportamento como critério para diferenciar o que é patológico do que não é, entre uma personalidade doentia ou saudável, torna mais difícil definir o que é ideologia e o que é consciência de classe. A consciência de mundo, a forma como nos relacionamos com ele, influencia tanto a análise do terapeuta quanto a pessoa que está em tratamento. Portanto, um campo rico para operações ideológicas.

A conexão “doença mental”/comportamentos destoantes do padrão dominante de uma época histórica/massacre dos corpos, vem de longe. Na idade Média, hospitais foram usados para prender “devassos”, “filhos pródigos”, “blasfemos”. Há registros de Hospitais para “doentes mentais” desde 1377 que aumentaram significativamente com o final da Inquisição. Nos EUA, o primeiro asilo data de 1773. Em 1801, Pinel publica seu primeiro tratado se opondo ao acorrentamento de pacientes (que ainda hoje ocorre), embora defendesse coerção e repressão rigorosas numa tentativa de “tratamento moral”. O século XIX assistiu a tentativas cirúrgicas para tratar mulheres doentes mentais que envolviam até retirada de ovários e clitóris. Em 1935 foi introduzida a lobotomia na psiquiatria, por Edgar Moniz (ganhou o Prêmio Nobel por isso), e mais tarde, foi introduzido o choque elétrico (Roma-1938). Tranquilizantes e a psicofarmacologia foram criados em 1952, inicialmente para controlar pacientes de hospitais psiquiátricos. Benjamin Rush, o pai da psiquiatria estadunidense, usava como medidas terapêuticas o confinamento por camisa-de-força, privação de alimentos agradáveis, uso de água fria, solidão e escuridão, além de engenhosos dispositivos para aterrorizar. As principais vítimas dessas “terapias” eram: a) mulheres adúlteras (nunca homens adúlteros…) ou que discordavam de seus maridos; b) homossexuais; c) masturbadores (na verdade quem era denunciado por exercer essa prática), e d) negros. Rush e a psiquiatria tinham teorias (leia-se ideologias) para justificar a relação entre as doenças e esses grupos sociais ou práticas não-cristãs, incluindo a hipótese da cor negra ser uma forma de lepra.

… a sociedade condenou ao estrangulamento em seus manicômios todos aqueles dos quais queria se livrar …, pois eles haviam se recusado a acumpliciar-se com ela em certos atos de suprema sujeira. Pois um louco é também um homem a quem a sociedade não quis ouvir e a quem quis impedir a expressão de insuportáveis verdades.” — Antonin Artaud

A luta social contra essas opressões/repressões recebeu expressão acadêmica sob o nome de Reforma Psiquiátrica. Um de seus pioneiros, o psiquiatra italiano Frederico Bassaglia, usou o determinante social e as contradições do capitalismo para combater a ideologia psiquiátrica, vigente até meados do século XX. E mais, mostrou a psiquiatria como uma ciência ideológica auxiliar ao capitalismo. Entretanto, advertiu que não basta substituir uma ciência por outra sem mudar a sociedade que sustenta tal ideologia. Porém, essa perspectiva não prevaleceu nas discussões sobre Reforma Psiquiátrica. Venceu a política de criar e prestar serviços assistenciais.

No Brasil, a Reforma Psiquiátrica vem desde o final dos anos 1980, após a criação do SUS e dos primeiros CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), implementados como política pública em 2002. Os CAPS foram uma das primeiras formas de iniciar a desinstitucionalização psiquiátrica, juntamente com os Residenciais Terapêuticos, pela perspectiva do Capital. Porém, nem mesmo essa reforma do Capital a esquerda lulo-petista foi capaz de concluir enquanto estava no governo federal. Com investimentos escassos, incapazes de atender sequer às novas demandas de sofrimento mental e nem os antigos doentes agora fora dos hospitais, a reforma brasileira forneceu a materialidade para ser criticada pela psiquiatria tradicional. Poucas cidades constituem rede de apoio psicossocial com cobertura adequada e integrada, capaz de dar conta do sofrimento mental sem um grande apoio hospitalar.

Adoecimento, sofrimento e dor (fisica e mental), fora os ‘acidentes’ e ‘tragédias’, acompanham a história dos trabalhadores. São inclusive um indício de sua posição de classe explorada e oprimida. A miséria, a insegurança, o excesso de trabalho e o seu caráter forçado destroem o corpo e o espírito do operário.” — Friederich Engels

Contra a Nota técnica 11/2019 a esquerda do capital argumenta que o desmonte das políticas públicas implementado na gestão Temer continuará sob Bolsonaro. “Esquecem” que o desmonte começou nas gestões da social-democracia ao permitir compra de leitos em instituições psiquiátricas, para dar conta da falta de CAPS. Desde o governo Lula (Portaria 2197/2004), foi institucionalizada a permissão para prefeituras transferirem dinheiro para comunidades terapêuticas ligadas a igrejas evangélicas e/ou ONG’S, no lugar dos CAPS. Tudo coerente com o capitalismo contemporâneo onde o Estado delega funções antes suas para a iniciativa privada com o objetivo de criar novos negócios. É de amplo conhecimento que a indústria farmacêutica, assim como a indústria médica movimentam enormes volumes de capital pelo mundo. Seria ilusório esperar que com a saúde mental seria diferente. É notável que este segmento da indústria farmacêutica seja um dos mais lucrativos e ao mesmo tempo se apoiar em evidências tão frágeis que nem os artifícios estatísticos utilizados por essas empresas conseguem ocultar.

O capitalismo é mais que uma relação econômica. É uma forma de reprodução da vida material que envolve sociedade, economia, política, cultura entre outros aspectos que se relacionam todos juntos e ao mesmo tempo. Assim, o surgir de crises econômicas faz surgir crises nos sujeitos, levando-os a adoecerem física e mentalmente. É o responsável por uma gama de doenças mentais e delas se beneficia. O mesmo Capital que cria núcleos familiares e unidades produtivas isoladas oferece a religião, o álcool e outras drogas para amortecer o sofrimento mental. Aqui, como em outras áreas, somente a auto-organização e a solidariedade de classe proletárias podem combater a psiquiatria tradicional da direita do capital e o assistencialismo da esquerda do capital.♟