O governo Trump e a luta de classes

O governo Trump e a luta de classes

Oito anos de governo do Partido Democrata – a chamada “era Obama” – deixaram como legado a piora das condições de vida do proletariado estadunidense, a prática de todo tipo de identitarismo e a implementação de tímidas reformas (casamento gay, reforma parcial do sistema de saúde) como uma sutil estratégia para manter intocadas e reforçadas as relações de exploração.

Pela propaganda da social-democracia mundial a vitória da candidata que daria continuidade ao “legado Obama” seria natural, pois além de tudo os dois governos de Obama conseguiram recuperar a economia, baixar os índices de desemprego, retirar tropas do Iraque, reatar relações diplomáticas com o capitalismo de Estado cubano e, durante a campanha, ainda havia incorporado em sua plataforma os pontos programáticos do “socialista” Bernie Sanders. Assim, quando os resultados estamparam a vitória do republicano Donald Trump, mesmo com três milhões de votos a menos, muitos se mostraram surpresos. E a máquina de manipulação ideológica do reformismo se desfez em mil pedaços.

Um conjunto de fatores permite compreender a vitória de Trump e também afastar alguns argumentos para pensar uma oposição radical a tudo que ele representa. O sistema partidário dos EUA está falido. O silêncio de Bernie Sanders fez com que boa parte de seus apoiadores ou ficasse em casa ou votasse no Partido Verde ou no próprio Trump (eleitores de Sanders foram responsáveis por 17% de seus votos). O contexto de avanço da extrema-direita na Europa Ocidental (França, Escandinávia, Áustria, Alemanha), Europa Oriental (Hungria, Polônia e Rússia), Oriente Médio (Turquia) e Sudeste Asiático (Filipinas) e o voto pela saída do Reino Unido da União Européia apresentam importantes paralelos com a eleição nos EUA: rejeição da população ao establishment político e acadêmico (“esquerda” e “direita” do capital) e base social fora dos centros metropolitanos, localizada nas pequenas e médias cidades e zonas rurais.

Embora Trump e seu programa econômico sejam uma fraude, durante a campanha ele se pronunciou lucidamente sobre o que aconteceu nas últimas décadas com o proletariado industrial no centro-oeste dos EUA, na antiga indústria de móveis na Virgínia e Carolina do Norte, nas minas de Virgínia Ocidental e com os mineiros desempregados pela agenda “verde” do ex-presidente Bill Clinton, marido de Hillary. Esta atitude contrastou com a retórica de bem-estar da campanha democrata que fingia descaradamente não perceber que agora todos estes ex-operários estão sujeitos às taxas de mortalidade mais altas dos EUA por suicídio, drogas e álcool. Enquanto isso, Trump ia à lugares onde cidades inteiras foram destruídas após fechamentos de plantas, com as pessoas ali deixadas para apodrecer e morrer, e aos centros industriais onde centenas de milhares de empregos foram perdidos para dizer: “nós vamos reconstruir as fábricas”.

(…)a esquerda pós-moderna tem procurado eliminar a própria noção de exploração. Os partidários desta corrente deviam mais exatamente classificar-se de pré-modernos, porque reduzem a exploração a uma forma de desigualdade e reduzem todas as desigualdades a problemas de injustiça, de raiz política, possível de resolver graças à obtenção de formas múltiplas de influência sobre as instituições capitalistas (…)” — João Bernardo

Em parte, a ascensão de Trump soa, de modo distorcido e ressentido, como uma resposta a décadas de cumplicidade e desprezo pelo futuro do operariado na elitista academia e nos meios de comunicação corporativos. Diante dessa materialidade, todas as verdadeiras acusações de racismo, misoginia e xenofobia feitas a Trump por liberais, sociais-democratas, multiculturais e pós-modernos não possuem força suficiente para superar o fato de que ele era o candidato “anti-establishment” (não faz parte da “panela” de políticos profissionais). E mais, ele conseguiu algo sem precedentes: articular essa parcela da sociedade estadunidense (proletariado empobrecido) com brancos de camada média e capitalistas. Por fim, tirou da obscuridade e colocou na cena pública da política a extrema-direita estadunidense. Tudo isso expressa o fracasso da “esquerda” moderada, desmoronando o “consenso” centro-direita / centro-esquerda dos últimos 45 anos na Europa e nos EUA. A ideologia do “mal menor” tenta nos fazer acreditar que esta “esquerda” seria uma barreira a estas forças, quando na verdade – historicamente comprovada – são o estímulo ao seu crescimento, já que nunca atendeu ou atenderá aos reais anseios e necessidades do proletariado.

Com essa base de classe contraditória a apoiá-lo, fica evidente que a política do Governo Trump será uma mistura das abordagens que republicanos e democratas desenvolveram nos últimos quarenta anos, valendo-se inclusive de leis e políticas que o próprio Partido Democrata aderiu ou criou. Quem, no campo da esquerda tradicional, explica a eleição de Trump como uma vitória do fascismo ignora:

  1. o forte apelo de sua campanha ao tocar no descalabro econômico enfrentado hoje por muitas famílias brancas;
  2. sua promessa de reconstruir a infra-estrutura decadente do país;
  3. o poder do voto anti-establishment;
  4. a incapacidade de Hillary Clinton e do Partido Democrata de derrotar alguém dizendo abertamente qualquer das coisas que Trump disse; e
  5. o fato dele não ter em momento algum ameaçado a ordem burguesa ou organizado forças extraparlamentares para destruí-la.

A verdadeira organização de que os operários têm necessidade no processo revolucionário é uma organização na qual cada um participa, corpo e alma, tanto na ação como na direção, na qual cada um pensa, decide e age mobilizando todas as suas faculdades – um bloco unido de pessoas plenamente responsáveis. Os dirigentes profissionais não têm lugar numa tal organização.” — Anton Pannekoek

A vitória de Trump deve ser entendida em sua real dimensão. Os EUA não ficaram nem mais nem menos divididos por essa eleição do que já estavam. As promessas de Trump aos trabalhadores não se materializarão. Cem milhões de estadunidenses não votaram, certamente por pensarem que o resultado da eleição não importaria tanto. Colocar em movimento esta maioria numa perspectiva anticapitalista exigirá se voltar para as condições de vida concretas do proletariado e descartar qualquer moralismo, rejeitando a falsa polarização “esquerda-direita” que as classes dominantes, lá e aqui, tentam enquadrar a luta. Percebendo que existem inimigos do proletariado em ambos os campos, é preciso forjar o terceiro campo.

Duas interpretações devem ser evitadas por quem possui uma visão proletária da política. De um lado a visão apocalíptica de que agora começou uma guerra racial sem fim. De outro lado, a visão moderada que confia nas instituições existentes para suavizar os aspectos mais “problemáticos” da Administração Trump. Enquanto a primeira é inútil como instrumento de organização, a segunda gera nas pessoas uma falsa sensação de segurança. Outra questão simples, mas de importância decisiva, está em fazer valer o princípio de que não importa qual seja a sua raça, religião, nacionalidade ou gênero, o que vale é o que você faz na luta de classes.

A campanha cheia de ódio de Trump revigorou a violência política nos EUA, fazendo proliferar incidentes de racismo e intimidação étnica pelo país. O que coloca na ordem do dia a questão da autodefesa na prática: se Trump inicia deportações em massa, como fazer para impedir – senão pela via da ação direta auto-organizada – que elas ocorram nos locais de estudo, trabalho e moradia? Pode ser necessário levantar barricadas físicas, lutar nas ruas contra racistas organizados e forças do Estado (republicanas e democratas). O que exigirá um esforço de organização de proletários armados para se defenderem. Em tal contexto, aumenta a percepção das pessoas comuns de que é uma perda de tempo participar de lutas simbólicas, de protestos que não causam nenhuma perturbação no ritmo real das coisas, o que coloca em um impasse as formas de luta reformistas e se transforma em vantagem para qualquer esquerda revolucionária. Porém, tais possibilidades favoráveis à esquerda não devem servir para desconsiderar que um movimento de extrema-direita fortalecido pode tomar a ofensiva e vir a esmagar a esquerda proletária.

Aos desesperados por uma eventual candidatura de Lula para barrar outra eventual de Bolsonaro, a história recente já deu seu recado. Em suma, a conjuntura aberta com a vitória de Trump permite muitas e contraditórias possibilidades. ♟