O Partido do Projeto “Escola Sem Partido” e outros ataques à educação

O Partido do Projeto “Escola Sem Partido” e outros ataques à educação

Criado em 2004 pelo procurador do estado de São Paulo, Miguel Nagib, o programa “Escola Sem Partido” (ESP) surgiu com o objetivo de impedir uma suposta doutrinação política “esquerdista” e o cerceamento da liberdade do processo de aprendizado nas escolas brasileiras. Para tanto, integrantes do movimento ESP orientam pais e alunos a policiar a prática docente em sala de aula, registrando e denunciando “atos de doutrinação”. O movimento ESP, entretanto, ganhou destaque ao se articular com parlamentares. Leis foram propostas em escalas municipal, estadual e nacional que visavam assegurar os objetivos do grupo. Dentre estas, o PL 867/2015 merece destaque, pois defende o fim da abordagem de quaisquer conteúdos e/ou realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais de pais ou responsáveis pelos estudantes. Em outras palavras, visa a extinção da liberdade de cátedra dos profissionais da educação e promove um projeto de educação de cabresto, conservador e a serviço da manutenção do poder político e econômico da elite brasileira. Ao final de 2018, diversas leis coerentes com os princípios do ESP estavam aprovadas em vários municípios e estados. O PL 867/2015, por outro lado, foi arquivado. Contudo, já no início deste ano legislativo foi reapresentado com modificações que mantêm as linhas gerais do projeto inicial, exclui as escolas particulares (cedendo ao poder da pressão econômica), ataca grêmios e centros acadêmicos estudantis e eleva ainda mais o nível de subjetivismo das suas diretrizes ditas “neutralizantes” do ensino.

Ao mesmo tempo, observa-se o movimento de precarização de condições do trabalho docente, com estabelecimento de uma lógica produtivista e gestorial de educação; demissões de efetivos e contratação de temporários sem vínculos; flexibilização de contratos de trabalho; redução de garantias; aumento de taxas de estresse ocupacional de professores, etc. Além disso, ampliam-se as modalidades de Ensino a Distância, que possibilitam que até 80% da carga horária de ensino seja cumprida de forma não presencial, com total monitoramento de interações entre professores e alunos. Estes dois fenômenos, aparentemente isolados, revelam uma interferência, cada vez mais presente, na autonomia pedagógica do processo de ensino e aprendizado: criam-se fórmulas prontas para “como se deve ensinar” e “como se deve aprender”, limitando as possibilidades autênticas desse processo.

A perspectiva que se tem é de continuidade de medidas que estabelecem modelos enrijecidos e tecnicistas para a educação. Das 35 metas apresentadas pela gestão Bolsonaro para os seus 100 primeiros dias de governo, quatro envolvem a esfera educacional: 1) Projeto Ciência na Escola, para integração de universidades na escola para o ensino de ciências; 2) Programa Alfabetização Acima de Tudo, que promete métodos científicos para redução do anafalbetismo; 3) Regulamentação do direito ao ensino domiciliar; 4) Disseminação de uma agenda a ser adotada por escolas com base no programa “Um Por Todos e Todos Por Um pela Ética e Cidadania”. Apesar de envolverem questões aparentemente voltadas para a melhoria da qualidade educacional, como a redução do anafalbetismo e a melhor integração entre a universidade e a sociedade, tais metas estão comprometidas com um modelo de educação que reproduz e revitaliza com novas embalagens os antigos e já consolidados valores meritocráticos, moralistas, tecnicistas e capitalistas — cerceando o espaço para que ideias divergentes destes valores possam ser pautadas, ou que a sua pertinência seja questionada.

Fala-se muito que a educação gratuita, de qualidade e para todos seria um poderoso instrumento da transformação social. Tal ideia costuma ser defendida tanto nos meios mais progressistas e da chamada esquerda, como nos meios da direita liberal. No entanto, tais perspectivas maquiam a realidade e fornecem, sobretudo ao proletariado, a expectativa de mudança radical de vida e/ou de ascensão social por meio da educação. A escolarização seria responsável por equalizar os indivíduos, que a partir daí desenvolveriam habilidades e se diferenciariam quanto a posições ocupadas a partir de esforço pessoal de cada um. Embora teoricamente isso seja possível, na prática se comprova que os casos em que isso ocorre representam uma ínfima estatística. A escola, em todos os níveis de ensino, apenas reproduz os valores da sociedade atual, pouco contribui para que estes sejam questionados e tampouco aponta para a construção de um outro modelo que objetive a sua superação. Ter esta percepção da realidade não significa defender que o proletariado deva renunciar ao seu espaço nos bancos escolares das instituições existentes. Muito pelo contrário, deve defender intransigentemente todas as condições necessárias para garantir seu acesso.

O objetivo da ação educativa é preparar as pessoas para a vida, para desenvolver-se e contribuir para o desenvolvimento da sociedade em que vivem, e isso significa muito mais que possuir um acúmulo de conhecimentos de cultura geral, científica e técnica ou ser capaz de desenvolver um sistema de habilidades manuais e intelectuais; significa, sobretudo, ser capaz de adotar uma correta atitude diante da vida, com as melhores convicções humanas, com altos valores éticos, estéticos, morais e os mais puros sentimentos.” — JM Ruiz-Calleja

Mas a extrema direita com matizes nazifascistas parece querer garantir que nenhum integrante da classe proletária alcance os níveis superiores de ensino, promovendo uma cristalização oficial das classes, ou seja, restabelecendo o sistema de castas/estamentos. É isso que vem defendendo o ministro da educação do atual governo, segundo o qual a universidade para todos não existe e que esta deve ser reservada a uma “elite intelectual” que ele fantasia não coincidir com a elite econômica.

Ao citar a escola alemã como um modelo a ser imitado, o ministro esquece (ou omite) as 74 posições que distanciam o Brasil da Alemanha em termos de IDH, segundo dados de 2018. Além disso, as próprias escolas já se encontram divididas em classes — há aquelas destinadas aos filhos das elites, bem equipadas com tecnologia de ponta, professores com melhores salários — e as dos filhos do proletariado — sucateadas, com professores recebendo um dos piores salários do mundo, onde impera a carência em todos os aspectos. De que maneira poderá se destacar intelectualmente um jovem mal alimentado, com moradia precária, convivendo diariamente com a violência das periferias, muitas vezes trabalhando para ajudar em casa e cujos pais têm baixo nível de educação formal? Ao propor a seleção de uma “elite intelectual” para frequentar a universidade, o ministro da educação, na melhor das hipóteses, demonstra nada saber sobre a realidade brasileira e, na pior, extrema má fé ao tentar enganar o proletariado com falsas promessas de garantia de emprego a partir da escola técnica. Esta proposta serve apenas para garantir que o filho do gestor de hoje seja o gestor do futuro e tenha disponível um proletariado qualificado de acordo com seus interesses e em quantidade excedente para explorar como bem entender.

A educação socialista é impossível nas atuais escolas e nas atuais famílias. Mas a educação integral nesta sociedade é igualmente impossível: os burgueses não compreendem que seus filhos se tornem trabalhadores, e os trabalhadores estão privados de todos os meios para dar a seus filhos uma instrução científica.” — Mikhail Bakunin

Fica claro, portanto, o partido do projeto Escola Sem Partido. O sucateamento da escola que a elite no executivo deseja realizar reflete, por trás das ideologias de neutralidade, a classe dominante em suas características mais retrógradas. O falso combate à fantasiosa doutrinação da esquerda é de fato a defesa da doutrinação fascistizante que busca controlar e embrutecer a educação dos proletários em formação para que jamais reflitam sobre a sua condição de classe. Algo que, por um lado, condiciona a classe proletária a uma educação obscurantista e, por outro, oferece um modelo já ultrapassado pelo próprio capitalismo desde a reestruturação produtiva que findou o fordismo. Afinal, ao capitalismo contemporâneo não basta ter à sua disposição os gorilas amestrados de Taylor para realizar trabalhos repetitivos em fábricas do início do século XX. A produção atual demanda força de trabalho altamente capacitada, subjetivamente capturada e, inclusive, dotada de pensamento crítico.

Por isso, o combate a uma ameaça reacionária sobre a escola prepara para o proletariado a armadilha de defender cegamente uma pedagogia dita democrática e modernizada propagada pela esquerda do capital como se estivessem na escola os embriões de uma outra sociedade. É necessário desvendar também a não-neutralidade deste modelo que expressa os interesses de capitalistas do século XXI cujos métodos de exploração são mais sutis que seus antecessores, mas não menos antagônicos à classe proletária. Tanto no modelo da extrema-direita quanto no modelo democrático-reformista se pretende que as instituições escolares estejam “saneadas” da luta de classes. Somente da auto-organização dos proletários em seus locais de trabalho, estudo e moradia, em sua luta por melhores condições de vida e pelo fim da exploração, podem surgir os presságios da escola da sociedade futura. ♟