O final da Pandemia somado ao retorno da socialdemocracia à presidência do Brasil trouxe de volta alguns temas à cena política nacional. Entre aqueles que estão mais em voga no momento vem o PL 2630, referente a medidas a serem tomadas pelo Estado para identificar e impedir a divulgação do que seria rotulado como fake news, assim como a criação de instituições responsáveis para esse fim e a punição daqueles envolvidos com elas.
Nesse momento os movimentos sociais não estão na mira do PL e dessa forma ele vem sendo conduzido pela bancada da esquerda na Câmara, como se não impactasse na luta de classes. Apesar de ser uma novidade para as mídias virtuais, o controle das notícias é realizado há muito tempo pelo Estado. Vejamos como isso é feito.
O papel dos jornais proletários
Desde as primeiras lutas proletárias organizadas temos notícia da existência dos jornais do proletariado. Por mais custoso que fosse conseguir a tecnologia necessária para a divulgação de material impresso – mesmo que obsoletas aos olhos de hoje – o proletariado organizado sempre precisou dar um jeito para divulgar a consciência de classe. Desde chamamentos para greves e assembleias até chegar aos jornais com análises mais aprofundadas que traziam a necessidade da autonomia da classe para derrotar a exploração do Capital, o proletariado organizado sempre esteve acompanhado de um bom jornal, da sua própria imprensa.
A importância é muito fácil de entender: combater a ideologia propagada pela superestrutura da sociedade capitalista, mais notadamente as igrejas, as instituições de ensino e, mais fácil de identificar, os meios de comunicação burgueses. São justamente estes últimos o alvo do PL 2630. Mas se nunca houve um projeto para impedir as notícias falsas da mídia impressa, televisionada e por radiotransmissores, por que surge esse PL para as mídias virtuais?
“As pessoas costumam perguntar, ‘O que eu posso fazer?’ A resposta não é difícil: Aprenda como o mundo funciona. Desafie as afirmações e intenções daqueles que tentam nos controlar por trás de uma fachada de democracia e monarquia. Unam-se por uma causa e um princípio comuns para desenvolver, construir, documentar, financiar e se defender. Aprenda. Desafie. Aja. Agora.” — Julian Assange
O Estado policial e a mídia
Os meios criados pelo proletariado para promover o avanço da consciência de classe sempre foram cerceados e controlados pelo Estado, por mais que isso tenha ocorrido em diferentes níveis de repressão em diferentes governos ao longo da história. Da mesma forma que outras lutas proletárias, a burguesia aprendeu a ceder àquilo que não colocava em xeque a sociedade de classes. Aos poucos, panfletos chamando para greves e assembleias pararam de ser apreendidos pela polícia, gráficas sindicais puderam deixar de ser clandestinas e até debates sobre qual modelo de sociedade queremos puderem ser televisionados e até receber um pequeno espaço em jornais impressos de divulgação massiva.
Essa abertura foi uma grande sacada da burguesia, pois doutrinou toda uma nova geração de escritores com uma certa crítica social a restringir a sua produção àquilo que é permitido. A socialdemocracia soube utilizar muito bem essa deixa do Capital, intensificando a disseminação da ideologia da mudança da sociedade por dentro das instituições democrático-burguesas. Entretanto, uma vez que o mar de rosas da esquerda do Capital não é capaz de resolver as necessidades do proletariado, paralelo à mídia burguesa o proletariado seguiu produzindo seus jornais e revistas.
A repressão a essa mídia paralela não ocorreu somente durante a ditadura cívico-militar. A fiscalização do que é impresso continuou através dos órgãos de inteligência, como a ABIN, conforme revelado no episódio wikileaks. Quanto à mídia transmitida por rádio e TV, a repressão se dá na fonte: somente algumas emissoras recebem a concessão pública que permite a operação. Todas as demais são consideradas clandestinas.
Percebe-se, portanto, que o Estado policial tem uma longa experiência na repressão da mídia impressa, seja fechando os estabelecimentos e prendendo os responsáveis, seja apreendendo o material produzido. Apesar de mais recentes, as mídias por rádio e TV sofreram um controle maior, ao limitar o uso dos sinais através de concessões. Já com relação às mídias virtuais, a ação das agências de inteligência estatal, até então, têm se limitado à interceptação, uma ação de vigilância amplamente divulgada por Edward Snowden. Algumas vezes as forças de repressão bloqueiam o acesso a algum site, mas não tarda para o conteúdo ser hospedado em outro endereço.
“A NSA construiu uma infra-estrutura que lhe permite interceptar quase tudo. Com esta capacidade, a grande maioria das comunicações entre seres humanos é automaticamente guardada sem discriminação. Se eu quisesse ver seus e-mails ou telefone de sua esposa, tudo que eu teria que fazer era usar os interceptadores. Posso obter seus e-mails, senhas, telefonemas, cartões de crédito.” — Edward Snowden, analista de sistemas, ex-administrador de sistemas da CIA e ex-contratado da NSA
As mídias virtuais na mira da repressão
O PL 2630 surge como uma nova forma de repressão das mídias virtuais. Concordamos que é importante barrar os ataques contra minorias, crianças e adolescentes, além de outros crimes de ódio, mas a reboque vem a ideologia da liberdade do “cidadão”. Isso seria feito através da responsabilização dos provedores de conteúdo. Estes deveriam vigiar tudo o que fosse hospedado nos seus servidores. Para isso, teriam que criar algoritmos de inteligência artificial (IA) que identifiquem possíveis notícias falsas, como os já utilizados há anos pelas agências de inteligência. Dessa forma, a vigilância, que era exercida por órgãos como a NSA (EUA) e a ABIN (Brasil), passa ser descentralizada e enraizada com muito mais profundidade nas entranhas do mundo virtual.
O compromisso da esquerda do Capital com as mudanças dentro da ordem, já referido anteriormente, é um dos impulsionadores deste movimento pelo PL das fake news. A bancada do PT está na dianteira desta regulação. Do outro lado do jogo político se posiciona a direita do Capital, principalmente bolsonaristas e teóricos da conspiração, com o argumento de não cercear a liberdade de expressão individual. Enquanto aqueles trabalham com a ideologia de que o Estado deve proteger o proletariado, estes defendem que é possível viver sem vigilância, “livres” no capitalismo. Por mais que pareçam antagônicos, complementam-se: são dois lados da mesma moeda.
O isolamento social consequente à Pandemia alavancou as formas de comunicação através das mídias virtuais. Em pouco tempo algo futurista se tornou comum e os aparelhos de celular viraram um objeto de consumo de primeira ordem. YouTubers e tiktokers se tornaram personagens famosos comparáveis a astros do rock. Isso também chegou no movimento estudantil e operário: rapidamente panfletos e jornais físicos parecem ter se tornado formatos obsoletos. Nesse ponto de vista, o PL 2630 se torna ainda mais preocupante para o proletariado: de que forma fazer propaganda de classe num mundo virtual intensamente vigiado?
A propaganda da consciência de classe
Num momento de refluxo das lutas proletárias o uso da propaganda se torna ainda mais necessário. Sem lutas autônomas generalizadas e, portanto, sem relações sociais germinais de uma nova sociedade, a luta pelo comunismo se resume a reorganizar a classe, retomar seu papel histórico. Como boa parte do proletariado se utiliza dos meios de comunicação em massa para se manter informado, caso não alcance esses meios, a esquerda comunista não será ouvida. Esses chamamentos mais amplos para atos em defesa do proletariado ou contra alguma medida repressiva do Estado dificilmente são alvos de interceptação da inteligência, mas podem cair na malha fina do PL 2630.
A atual onda de ódio é só mais um sintoma da hegemonia das ideologias capitalistas, e é utilizada como mote para limitar os agressores virtuais, mas não só. Enquanto houver capitalismo a burguesia seguirá interceptando qualquer meio de comunicação proletário, com ou sem leis para isso. Portanto, é importante estarmos atentos e, independente do controle do Estado, criarmos novas formas de se comunicar através das mídias virtuais.♟