Vivemos um momento obscuro da nossa história. Percebe-se que algo tenebroso ronda as nossas vidas, mas ainda é difícil fazer uma análise mais acurada a respeito de para onde isso tudo irá nos levar. Mas nos parece que não será para um bom destino. Estamos sob o comando de um governo que é dominado por evangélicos, militares e ultraconservadores. Como se isso não bastasse, o país ocupa as manchetes da mídia internacional como exemplo de incompetência, atrasos, escândalos e lutas internas pelo poder.
Estes primeiros meses do governo Bolsonaro têm sido marcados pela violência policial, altas taxas de desemprego, empobrecimento do proletariado, desregulação crescente das relações trabalhistas, desmonte do SUS, cortes profundos de verbas das instituições federais de educação, desrespeito às populações indígenas, a movimentos e ativistas sociais, retrocessos profundos na legislação ambiental, etc. Dentre esses e outros desmontes que impactam negativamente nossas vidas, a cereja do bolo é aprovação da reforma da previdência na Câmara Federal.
O governo atua abertamente em prol das elites, removendo inclusive as migalhas ao proletariado jogadas pelos governos anteriores. Além disso, o presidente parece não compreender a distinção entre Estado e governo, penalizando, perseguindo e exonerando aqueles que divergem de suas opiniões e/ou de seus ministros. Age como se tivesse ganho um brinquedo (o Brasil), podendo fazer dele o que bem entender. A administração da “coisa pública/estatal” está a cada dia mais privada, em sentido amplo. Por um lado o Estado sai de cena em áreas nas quais era protagonista e por outro, o que determina os rumos do país é a vontade do capitão/rei e de seus herdeiros.
Diante deste quadro aterrorizante, pergunta-se: por que o proletariado assiste a tudo isso passivamente sem tomar em suas mãos as rédeas do seu destino? Sabemos que a força de trabalho do proletariado é o elemento chave para a reprodução da sociedade. No entanto, apesar de concentrar a maior parte da população mundial, essa classe social é historicamente dominada por outros grupos sociais minoritários, de modo que o proletariado é educado para não questionar o funcionamento da sociedade, não se posicionar politicamente, e muito menos reivindicar suas vontades coletivas – afinal, tais atitudes comprometem o poder das classes dominantes. Assim hetero-organizado, ou seja, sem autonomia sobre as decisões que tangem a sua própria existência, o proletariado passa a acreditar que líderes, sindicatos e partidos são capazes de expressar as suas demandas e que a democracia assegura a representatividade das suas pautas.
“Historicamente, os direitos surgiram na modernidade como veículo de emancipação da privação de direitos políticos ou da servidão institucionalizada… eles surgiram como meio de proteção contra o uso arbitrário e abuso do poder soberano e social e como um modo de garantir e naturalizar os poderes sociais dominantes. O alto preço da proteção institucionalizada é sempre uma medida de dependência e concordância com as regras do protetor.” — Wendy Brown
Por um lado, a direita tem clareza dos elementos necessários para a prosperidade de seus interesses particulares e constrói diariamente estes alicerces (dentro e fora de governos), como faz o atual governo brasileiro ao criar condições propícias à intensificação da exploração do trabalho, à vigilância social do proletariado, e à ampliação da lucratividade do capital em suas diversas formas.
Por outro lado, a social-democracia reforça as instituições de controle do proletariado, ao canalizar as lutas sociais para os corredores parlamentares e bravatas sindicais – espaços que amortizam qualquer ímpeto de transformação social ao aumentar a ilusão de representatividade política e desencorajar a auto-organização e a reação do proletariado: o lobby passa a substituir a ação direta, prática enraizada ao ponto que as novas gerações que se tornaram jovens adultos ao fim deste período, cresceram com a ilusão do pacto social, no qual o enfrentamento direto foi substituído pelas negociações.
Durante os treze de anos de governo do PT, grande parte das lideranças integrantes das organizações que antes mobilizavam as lutas sociais passou a ocupar cargos no governo. Consequentemente, ao alcançarem posições de mando no aparelho estatal, ou seja, ao ingressarem na classe dominante, essas lideranças passaram a atuar no sentido de desencorajar a organização e reação do proletariado. Uma vez que o governo era “dos trabalhadores”, isto é, já que o partido no poder também dominava as instituições que diziam pertencer às classes dominadas, tudo poderia ser resolvido com base nas negociações entre proletariado e capitalistas, sem maiores conturbações. Na verdade, o que se dava eram acordos internos entre as velhas e essas novas elites do país que ascenderam à condição de gestores às custas dos trabalhadores. Tendo a capacidade de “domar” a massa de força de trabalho para gerir os conflitos sociais, o governo petista, seus aliados e suas instituições obrigaram os capitalistas a se sentarem à mesa com eles. Dessa forma, demonstrar poder de controle sobre qualquer sinal de revolta da classe proletária era condição básica.
Assim, aos poucos, com deduragens, ameaças e peleguismo, a social-democracia conseguiu fazer o proletariado abandonar as ruas como o lugar das lutas e deixar que suas demandas fossem resolvidas por meio de negociações parlamentares. Hoje o que se observa nas manifestações que têm sido convocadas é um cortejo fúnebre de quem caminha e grita palavras de ordem vazias, nas quais não acredita e tampouco identifica naquelas ações (as chamadas “greves gerais” de um dia) a força necessária para impedir os retrocessos aos quais estamos sendo submetidos. Diante do cenário brasileiro atual, o que não faltam são motivos para indignação, contudo, o que sobra é um estado inerte de apatia do proletariado, que raramente “atropela” os meios legalistas para ocupar as ruas ou locais de trabalho, estudo ou moradia, reivindicando suas próprias demandas e fazendo valer as suas vontades.
“Ignorar não é o mesmo que ignorância. Exige esforço da nossa parte.” — Margaret Atwood
Outros fatores também contribuem para este quadro desolador de letargia. Ao mesmo tempo que as antigas lideranças atuaram para conduzir o proletariado para esfera parlamentar, também atuaram no sentido de canalizar a ação política para as questões identitárias que, além de fragmentar ainda mais o proletariado – mulheres, negros, população LGBT, indígenas – não costumam fazer um recorte de classe, ou seja, não têm perspectiva emancipatória. Ao defenderem as políticas de “empoderamento”, se alinham perfeitamente à ideia de justiça e punitivismo nos moldes burgueses. Nenhuma identidade é neutra, geral ou universal – a classe perpassa a todas elas.
Contudo, o proletariado não deve ser visto como uma vítima de tudo isso. O alinhamento com o pensamento religioso expresso seguidamente pelo governo, as ilusões sobre a ausência de corrupção e desenvolvimento durante a ditadura civil-militar, a decepção com a esquerda do capital como se fosse essa a única esquerda e o conservadorismo nos costumes entre outras mazelas, são fatores que colocam parcela significativa do proletariado alinhada com este governo mesmo diante de tantas perdas reais e profundas.
Atualmente, quem aparece resistindo às medidas propostas pelo governo, em grande parte representados pela social democracia, aparentemente o fazem por mero cumprimento de agenda. Vão às ruas protestar, mas muitas vezes utilizam de palavras de ordem infantilizadas, como “1, 2, 3… 4, 5, mil… ou param esses cortes ou paramos o Brasil”, que não se traduzem em intervenções práticas. Em 2019 aconteceram três atos contra os cortes na educação e a reforma da previdência. O país não parou e muito menos “foi parado”, a reforma avançou, mais cortes foram anunciados, e não há indícios de que os retrocessos cessarão.
O que precisa ocorrer para que o proletariado volte a ser ativo na cena política do Brasil? Qual limite deve ser ultrapassado para que haja uma reação coletiva? Este cenário de precarização da vida só poderá ser revertido com auto-organização a partir de nossos locais de trabalho, estudo e moradia. Debaixo para cima e não das cúpulas para “as bases”. Se não começarmos a intervir de forma direta agora, poderemos ser obrigados a nos limitarmos a defender as liberdades políticas e civis. Estamos dispostos a ignorar a realidade até que se chegue a este ponto? ♟