A eleição de dois militares de carreira para os postos mais altos do Executivo Brasileiro recolocou em cores vivas um traço permanente de nossa história: a tutela das forças armadas sobre o Estado e a sociedade. Desde o Brasil Império é longa a lista de intervenções, golpes e de assunção direta do poder por militares. Basta lembrar que a própria proclamação da república foi um processo anti-popular deflagrado por oficiais do exército e desvinculado de qualquer iniciativa de origem proletária. Ademais, a recém nascida república brasileira deu seus primeiros passos sobre o sangue de brasileiros, demarcando o que seria uma constante histórica: a atuação do exército brasileiro contra a sua população civil. Assim, Canudos (BA), Contestado (PR/SC) e a Revolta da Vacina (RJ) foram brutalmente reprimidas. Desde aquela época, matanças vêm sendo oficialmente justificadas como uma necessidade da modernização do país. Ou seja, para as classes dominantes modernizar é sinônimo do extermínio de “sertanejos” e “caboclos” e do esmagamento da rebeldia no proletariado urbano.
Mesmo governos tidos como “conciliatórios” (Vargas, JK e João Goulart), além de afinarem a exploração, sempre trataram iniciativas auto-organizadas dos explorados como caso de polícia, até que foi necessário substituir a tutela pelo governo direto das forças armadas com o golpe empresarial-militar de 1964 para dar novo salto “modernizador” e eliminar pela força bruta lideranças radicais e movimentos combativos do país.
O retorno à democracia via abertura “lenta, gradual e segura” de Geisel, marcou a volta dos militares à função de tutores das instituições. Mesmo durante os 22 anos de experiência social-democrata (dois governos FHC/PSDB; dois governos Lula/PT e um governo e meio Dilma/PT) com sua estratégia de “apaziguamento” dos conflitos sociais, os militares atuaram ativamente. Exemplos didáticos disso foram: a ordem dada por FHC para que o exército invadisse as refinarias de petróleo na greve dos petroleiros de 1995; a ordem de Lula para que paraquedistas do exército e blindados da Marinha apoiassem a ocupação do Complexo do Alemão no RJ em 2007 e a ordem de Dilma para que as FFAA participassem da invasão e ocupação da favela da Maré também no RJ em 2015.
Em 2019 o movimento pendular da tutela voltará para o governo direto dos militares, dessa vez legitimados pelo voto popular. Essa diferença qualitativa fornecida pela democracia nos obriga a analisar o leque de apoios obtidos como critério determinante para nos orientar sobre o que se pode esperar do Governo Bolsonaro. Nem tudo poderá ser antecipado, mas se pode delinear tendências a partir da materialidade e da subjetividade da movimentação das classes e segmentos que o compõem e sustentam. Assim, pode-se identificar com clareza algumas que seguem de modo sumário:
Rentistas parasitas que têm no novo governo um pilar para sua estratégia de ampliação da acumulação via especulação direta no jogo bolsa-dólar. Estes são o lado oculto do “mercado”, ideologicamente chamados de “investidores”; a parcela do proletariado não-comunista que, ressentido com a corrupta social-democracia petista, resolveu dar um voto de “castigo” sem medir consequências; os pastores evangélicos que, insatisfeitos com suas fortunas fundadas sobre o dízimo dos fiéis, iniciaram sua estratégia de ampliação da acumulação via ocupação de cargos da máquina estatal com voracidade máxima; os capitalistas do agronegócio que financiaram o governo eleito visando posterior cobertura estatal para incrementar a escravização do proletariado rural e extrativismos criminosos.
Há também os capitalistas gestores de fundos de pensão e banqueiros cuja estratégia que visa ampliar sua acumulação se apoderando dos recursos destinados à previdência social dos trabalhadores e por privatizações de estatais em áreas onde possuem negócios (sua maior expressão é o “superministro” da economia Paulo Guedes); as camadas médias repletas de senso comum que enxergam no aumento de consumidores promovido pelos governos da social-democracia apenas um aumento na concorrência para a ascensão ao “clube” dos capitalistas e apoiaram Bolsonaro como uma estratégia elitista de manutenção do status quo; os empresários e burocratas decadentes que gozavam de privilégios durante a ditadura que perceberam que Bolsonaro será decisivo para recuperação de privilégios; os grupelhos fascistas que enxergam no governo uma oportunidade histórica para ampliarem o alcance e enraizarem socialmente suas ideias xenófobas, patriarcais e militaristas; as velhas raposas da política profissional corrupta que farejaram de longe que sustentar o governo eleito seria uma ótima estratégia para fugir da justiça e escapar da conclusão das investigações sobre seus crimes do colarinho branco.
“Quem analisa a conjuntura deve cuidar para que sua análise abranja os diferentes aspectos dos problemas e das contradições que se manifestam nos acontecimentos históricos e ponderar de forma equilibrada quais deles são principais ou secundários no seu desenvolvimento.” — Emilio Gennari
Além desses, detecta-se também os operadores jurídicos reacionários que pretendem ampliar o patamar punitivo e repressivo sobre o proletariado e demais explorados para favorecer o conjunto da acumulação capitalista (sua maior expressão será o “superministro” Sérgio Moro em articulação com a bancada da bala no Congresso Nacional); a indústria armamentista que, discretamente, vem aplicando a sua estratégia de ampliação comercial via liberação do porte de armas e do estímulo a uma corrida armamentista contra a Venezuela; o empresariado do ramo educacional que desenvolveu sua estratégia de ampliação da acumulação via apoderamento de fatias da estrutura estatal de ensino em todos os níveis. Por fim, capitalistas da saúde e do transporte urbano que aplicam a estratégia de ampliação da acumulação via manutenção de posições obtidas no governo Temer.
A escolha dos ministros do novo governo fornece uma dimensão precisa da linha política que será seguida. Quase todos os ministros são oriundos das forças armadas ou ligados ao mercado financeiro e às igrejas neopentecostais. O chefe do Itamaraty e do MEC não são militares nem do mercado financeiro, porém são reconhecidos conservadores. Historicamente, enquanto explorados/as e oprimido/as, esta não chega a ser propriamente uma conjuntura “nova”. Todavia, esta ascensão da extrema-direita aos postos de comando do Estado significa que a nossa vida continuará muito difícil. Some-se ainda uma previsível hipertrofia das FFAA para além da política, seja pela via do reaparelhamento técnico e aquisição de novos equipamentos de morte, seja pela via da intensificação dos monitoramentos e o quadro para o proletariado se torna ainda mais desfavorável.
Esta volta do pêndulo para o governo direto do militarismo pode levar a desdobramentos imprevisíveis de consequências catastróficas no âmbito das relações exteriores pois está desenhado um cenário de maior envolvimento do Brasil em conflitos. Exemplos disso são o realinhamento automático com os EUA, em especial com a administração Trump, provocações ao regime venezuelano e o apoio a Israel, o “cão sangrento” do Oriente Médio, e seu governo assumidamente racista.
“Principais erros de uma análise de conjuntura […] análises que são um enunciado de considerações gerais […] a superficialidade é aquele estudo que se limita a descrever o que pode ser visto por qualquer pessoa que ande pelas ruas de olhos abertos […] o subjetivismo se dá quando, consciente ou inconscientemente, assumimos o papel de torcedor […] a unilateralidade ocorre quando quem analisa a conjuntura superestima uma de suas manifestações e, iluminado por ela, julga todos os acontecimentos.” — Emilio Gennari
Algumas ações do novo governo servirão de paradigma para que sua adoção seja estendida a todas as esferas governamentais. Desse modo, governos estaduais e municipais adotarão como referência em seus âmbitos medidas como o aprofundamento da Reforma Trabalhista (mais precarização do trabalho), a Reforma da Previdência (trabalhar e contribuir até morrer sem usufruir), uma nova onda de privatização de empresas estatais (aumento do desemprego) e contenção de gastos nos serviços de saúde, educação e assistência social (piora geral da qualidade de vida da população mais pobre).
Caso estas medidas tão impopulares encontrem dificuldades de implementação, o esforço para aprovar as pautas conservadoras do programa de Bolsonaro – Escola Sem Partido, Criminalização do Aborto entre outras – podem ganhar destaque como forma de mostrar algum “sucesso” da nova gestão do Estado.
Olhadas em conjunto, a consequência certa dessas medidas será o aumento da precarização da reprodução da vida. O que torna bastante provável a generalização do descontentamento com o aumento da contestação e a eclosão de lutas enérgicas de oposição ao governo. Porém, as formas de oposição e luta tendem a ser antagônicas. Analisar este antagonismo é assunto para um Boletim Batalhar específico.♟