Ao contrário do que idealizam certas mensagens motivacionais que circulam pelas redes sociais, e até mesmo por alguns intelectuais e movimentos políticos, um vírus e uma quarentena não farão a humanidade melhor. As pessoas não estão se respeitando mais, os trabalhadores não estão sendo finalmente valorizados, tampouco a mítica natureza está sendo melhor preservada. Na verdade, o que já é possível observar durante a pandemia da Covid-19 é exatamente o avesso desse diagnóstico feliz e, logo, cínico. Continua a imperar o preconceito e o desrespeito aos mais vulneráveis, o proletariado experimenta um novo ciclo de aprofundamento da exploração e de empobrecimento, e aumentam também as queimadas, desmatamentos de florestas e garimpos clandestinos no país.
Ao mesmo tempo, como todo grande capitalista já sabe, pois assim funciona a lógica e estrutura deste modelo econômico e social, as crises podem significar chances históricas. Desde a prestigiada e sempre equivocada XP Investimentos, que acaba de afirmar que o Brasil vai bem no combate ao coronavírus e que o pico da curva de mortes entre os ricos já passou, ao multibilionário Paulo Jorge Lemann (3G, ABInBev, Kraft Heinz, B2W, Burger King), a ideia destes é: “O que eu gosto mais, francamente, é que toda crise é cheia de oportunidades.” Mas isso não é novidade, esse cenário “oportuno” já vinha sendo gestado dentro do atual sistema, pré-pandemia. Todos os setores burgueses ligados ao fomento, fornecimento de insumos e de serviços tecnológicos remotos sairão dessa crise fortalecidos. E ensinarão a lição ao resto do empresariado: investir em tecnologia para diminuir “custos fixos”, ou seja, os salários e os ambientes de trabalho.
Oportunidades: garantias aos empresários
Não se trata de negar que há e virá uma grave crise econômica, tampouco a da pandemia, mas de perceber que ela será gerida de acordo com as mesmas regras do jogo de antes da pandemia: os grandes capitalistas sobrevivem, os médios podem quebrar, os pequenos geralmente quebram e os informais lutam diariamente, mas o proletariado, de forma geral, é o único elo que sustenta a cadeia produtiva da exploração e geração da riqueza.
Vários setores econômicos estão ganhando os mais variados auxílios do governo. Já no início da crise do coronavírus o setor da aviação civil, do turismo e dos bancos foram atingidos e também foram os primeiros a ter reuniões com o Ministério da Economia, em busca de apoio. O setor da produção de álcool no Brasil, que já vinha em crise com a diminuição do preço do petróleo também correu ao governo. Setores como comércio e indústria de bens duráveis que também foram afetados pela crise vão ter acesso a créditos com juros baixos a partir de recursos repassados do Banco Central para os bancos públicos e privados. Já os pequenos e médios empresários estão tendo dificuldade para acessar essas linhas de crédito, pois os bancos fazem exigências e pedem garantias para aportar esses recursos. Exigências e garantias que evidentemente são mais difíceis de o pequeno empresário garantir. Por fim, a lógica nas crises é a de sempre, que se acentuem os grandes monopólios, quer dizer, aqueles capazes de “aproveitar as oportunidades”.
“A máquina que é mais aperfeiçoada exclui as menos aperfeiçoadas, as máquinas que não podem realizar muito e as ferramentas simples são exterminadas e a técnica da máquina se desenvolve com passos gigantes para uma sempre crescente produtividade. […] Detrás da máquina gigante há um grande capitalista e detrás da pequena máquina há um pequeno capitalista. Com a derrota da pequena máquina, o pequeno capitalista, como capitalista, perece com todas suas esperanças e felicidades.” — Anton Pannekoek, em Marxismo e Darwinismo
Oportunidades: saquear o proletariado
O proletariado vive com maior intensidade seu dilema diário, o sujeito que ora é superexplorado, ora é descartado. Assim, trabalhadores de setores não essenciais sofrem com as demissões ou reduções severas de salário, ao mesmo tempo que aqueles que conseguem manter sua inserção ficam expostos a jornadas extenuantes e ao próprio risco de contaminação. Começando pelos já precarizados trabalhadores de saúde, a categoria dos enfermeiros está nessa linha de frente da exploração e da contaminação. Sofrem com falta de equipamentos, salários baixos e atrasados, descontrole de jornada de trabalho, e ausência completa de um programa de acolhimento. As mortes de enfermeiras no Brasil (85% são mulheres) já ultrapassam as da Espanha e Itália somadas. Outra categoria de trabalhadores que está na linha de frente são os de aplicativos, cujo cenário de precarização, já relatado no #BB52, foi agravado, pois pesquisas comprovam o aumento na carga horária de trabalho e a diminuição na remuneração, além de terem que arcar do próprio bolso com materiais para evitar o contágio, não fornecido pelas empresas.
O governo, com a intenção de ajudar o empresariado e salvar a economia, editou a MP 936/2020, por meio da qual permite a suspensão ou redução dos contratos de trabalho e auxilia as empresas com o custo da folha de pagamento sem obrigar a demissão, que pode ocorrer caso o trabalhador não assine o acordo imposto. Como esse auxílio governamental é calculado com base no valor do seguro-desemprego, na prática ocorre uma redução na renda mensal. Enquanto uma série de processos burocráticos e despesas com demissões são facilitados para a empresa, o proletariado se vê entre aceitar esses “acordos” ou correr o risco de ingressar nas estatísticas do desemprego estrutural.
Mudanças relevantes também foram trazidas pela MP 927/2020, como o teletrabalho, em que o patrão não é obrigado a arcar com os custos de equipamentos e nem com insumos como eletricidade, telefone e internet, bem como deixa de pagar insalubridade e periculosidade. Na prática, a confusão entre trabalho e domicílio desregula e aumenta a jornada laboral.
Já o auxílio emergencial do governo inicialmente atenderia cerca de quarenta milhões de trabalhadores informais, pois metade da força de trabalho brasileira opera fora das normas de seguridade social, mas teve que ser ampliado para uma série de categorias profissionais que estão sob o regime de microempreendedor individual, demonstrando assim a falácia da ideologia do empreendedorismo. Essa multidão, não albergada por contratos de emprego, tem que se humilhar em imensas filas para regularizar seus CPFs e receber os irrisórios R$ 600,00, verba temporária, bem menor que 1 salário mínimo, que soma cerca de R$ 60 bilhões aos cofres governamentais, ao passo que a ajuda do Banco Central anunciada aos banqueiros foi de 1,2 trilhão de reais.
Diante disso tudo, os sindicatos vêm cumprindo seu papel institucional de legitimar essa superexploração e sequer esboçam reação às falas de Paulo Guedes quando esse promete mais reduções de encargos trabalhistas e se refere aos trabalhadores da saúde como “aproveitadores” por reivindicarem aumento salarial.
*Errata: no número 53, abril de 2020, na última linha utilizamos o termo “gestores” de uma forma equivocada. O termo foi utilizado de forma técnica, imaginando funcionários de forma geral. Contudo, esse termo para o Boletim Batalhar é uma categoria analítica que expressa a existência e o comportamento de uma classe social capitalista. Aproveitamos para reafirmar que os gestores, enquanto classe específica, são inimigos do proletariado, mesmo os que costumam se apresentar nos conflitos sociais enquanto falsos amigos.
Caminhos para batalhar
Nesse cenário em que trabalhadores informais e “MEIs” acabam formando uma imensa massa à deriva, fica evidente que o sindicalismo não consegue acompanhar as mudanças do atual sistema econômico. Ao mesmo tempo, por meio das urnas e das leis a realidade das relações de exploração só mudará para pior. Logo, o proletariado necessita criar suas próprias redes de combate e de solidariedade, sem divisão de categorias ou de formas jurídicas.
É o momento de unir usuários do sistema de saúde com o proletariado desse setor, lutando de forma ativa e direta por equipamentos adequados e jornadas com repouso. Reivindicando o pagamento de todos os salários atrasados e adicionais por insalubridade, ainda não contemplados em diversas regiões do país. Também é preciso impedir que uma parcela da população, usuária do SUS, justamente exaltada, os ofenda ou agrida, como tem acontecido. Que essa indignação, e não a dos sabotadores da quarentena, seja canalizada contra o capital da saúde, seus empresários, diretores e gestores*. A área da saúde hoje é a ponta de lança do enfrentamento à pandemia. Ela tem o potencial de ser exemplo para as demais categorias nas próximas lutas e nas que já estão em curso. Porém, para isso, é preciso se desvencilhar das formas de luta da esquerda do capital, entranhadas na classe durante os 14 anos que a social-democracia esteve no governo federal.
A emergência de um problema sanitário novo, para o qual não havia uma resposta pronta das classes dominantes, permitiu, ao mesmo tempo que exigiu, um movimento espontâneo de olhar para o local, as relações e o processo de trabalho como um todo. Mais do que espontâneo, a exigência de uma resposta coletiva às carências de recursos e à desvalorização dos trabalhadores nas diferentes unidades de saúde está permitindo caminhar em direção à autonomia da classe: nesse momento eles estão defendendo os seus e os nossos interesses e não os de patrões, de empresas, de gestores, do país ou de líderes sindicais. Para o total desenvolvimento da ação autônoma, falta nos vermos como classe para si, deixarmos a espontaneidade e agirmos conscientemente, preocupados com o nosso próprio destino na sociedade. ♟