Para ter saúde na sociedade que adoece é preciso lutar

Para ter saúde na sociedade que adoece é preciso lutar

A preocupação com a saúde e o adoecimento é uma constante na vida do proletariado. O sentimento de proximidade da morte e a consequente lembrança da brevidade da vida que o processo de adoecimento nos traz é comum a qualquer ser humano e assimilado por cada um de acordo com a sua resiliência. Porém, algo que a sociedade capitalista nos traz desde os seus primórdios, atrelado à necessidade de subsistência – que não é garantida – é a frequente lembrança de que precisamos manter corpos e mentes em capacidade para produzir capital. Neste Boletim vamos abordar como os capitalistas, por meio do Estado e sua infraestrutura, têm regulado esse processo, os limites dessa regulação, e o papel da solidariedade de classe para ir além.

A história da assistência à saúde

Um dos primeiros estudos sobre as consequências da exploração do trabalho na saúde do proletariado foi As Condições da Classe Operária na Inglaterra, de F. Engels. Nele é retratada a ausência quase completa de assistência à saúde, seja pela burguesia seja pelo Estado. A luta pela redução das jornadas diárias de 12-18h foi a primeira bandeira para enfrentar as doenças do trabalho. E para lidar com as necessidades dos já adoecidos, o proletariado criou as caixas de ajuda mútua. Foi somente a partir de 1883, na Alemanha de Bismarck, que a burguesia começou a utilizar uma parte da exploração obtida dos assalariados para financiar a assistência a esses. Nascia aqui um modelo de financiamento baseado no tributo descontado da folha salarial do operário e, dessa forma, voltado somente para os assalariados. Mais tarde, após a II Guerra Mundial, baseado no relatório Beveridge e permeado pelos ideais do “Estado de bem-estar social” inglês, é criado o modelo de assistência universal à saúde do NHS (Serviço Nacional de Saúde), financiado pelos tributos gerais do Estado.

No Brasil, o modelo de financiamento estatal à saúde se inicia com algo próximo do modelo Bismarckiano, o INAMPS, em 1977, durante a ditadura civil-militar, como uma tentativa da burguesia em reduzir o afastamento do trabalho e manter o operário produtivo, dessa forma aumentando o capital. Nessa época somente o proletariado com carteira assinada tinha acesso à assistência à saúde. Pessoas em situação de rua e desempregados precisavam recorrer às Casas de Beneficência. Essas instituições filantrópicas são incorporadas ao sistema público em 1988, ano da promulgação da nova Constituição, que também cria o Sistema Único de Saúde (SUS). Em parte fruto da luta dos movimentos sociais e de intelectuais da saúde – cuja expressão foi mais evidente no Nordeste do país -, em parte uma política para reduzir gastos excessivos decorrentes de uma ausência de regulação dos repasses de verbas aos hospitais conveniados ao INAMPS, o que houve foi uma transição no modelo de organização e financiamento do sistema nacional de saúde, que passa a ser universal. Mas apesar de muito avançado na teoria, à frente do modelo britânico que serviu de inspiração, na prática a escassez de recursos tornou-o motivo de medo para o proletariado brasileiro.

O baixo financiamento estatal permite entender por que o movimento operário sempre andou tão descompassado em relação ao movimento dos trabalhadores da saúde e aos movimentos de bairro associados a eles. A luta pelo investimento estatal na assistência mais próxima da casa do proletário, com alta resolutividade, a atenção primária, é pauta histórica dos trabalhadores da saúde e comunidades. Já os sindicatos, visando o acesso imediato às demandas de saúde e cientes da demora para chegar o investimento público, sempre exigiram planos de assistência privados, desarticulando a pauta pela melhora da rede estatal.

“Todos os movimentos até aqui foram movimentos de minorias ou no interesse de minorias. O movimento proletário é o movimento autônomo da maioria imensa no interesse da maioria imensa. O proletariado, a camada mais baixa da sociedade atual, não pode elevar-se, não pode endireitar-se, sem fazer ir pelos ares toda a superestrutura das camadas que formam a sociedade oficial.” — Karl Marx, Manifesto do Partido Comunista

Relação entre trabalhadores da saúde e pacientes: impactos do financiamento

Receber um reforço positivo é satisfatório para qualquer pessoa e isso não é diferente para o proletariado. Quando se trata de uma profissão com um contato tão íntimo com a outra pessoa, como aqueles que cuidam da saúde, isso se torna ainda mais intenso. Desde que termina a graduação, o trabalhador da saúde tem a expectativa de resolver, evitar, ou, ao menos, mitigar o sofrimento do outro. Os mais ingênuos veem quase como um sacerdócio. Quando essa expectativa é frustrada de modo contínuo, seja por demandas de saúde com determinantes sociais, que fogem ao alcance da clínica, seja por um ambiente de trabalho que não permite o melhor atendimento, seja pela pressão em alcançar maior quantidade de atendimentos no mesmo tempo, perdendo a qualidade, ou até por uma incapacidade de se manter atualizado em virtude do cansaço decorrente de condições pessoais da vida que se acumulam, gera-se um fenômeno chamado de “burn-out”. Uma condição que é muito comum e reconhecida internacionalmente nos trabalhadores das emergências, escolas, assistência social e demais locais com grande pressão de demanda de atendimento.

Se situarmos essa patologia no contexto dos novos contratos de trabalho (terceirização, uberização, pejotização) que se tornam cada vez mais comuns entre os trabalhadores da saúde, sejam eles médicos, enfermeiros, dentistas, nutricionistas, entre outros, percebemos a pandemia que se avizinha. O antigo profissional liberal com a sua clínica fazendo atendimentos particulares é algo cada vez mais raro. Mesmo os trabalhadores que prestam assistência na rede pública são terceirizados, quando não pejotizados. A maioria dos proletários não consegue pagar os valores dos raros profissionais que mantêm as clínicas particulares. Ao assalariado resta ser atendido pelo trabalhador com burn-out que, não à toa, atende de cara amarrada, sem dar muita satisfação, com pouca ou nenhuma empatia, preocupado com o próximo atendimento que o aguarda.

“O capital domina agora a totalidade das relações que os homens têm entre si. Cada vez se torna mais óbvio que toda luta parcial que esteja limitada a uma relação particular se vê forçada a se inserir em uma luta geral contra todo o sistema de relações entre as pessoas: o capital. De outro modo, é integrado ou destruído.” — Gilles Dauvé e François Martin

Para viver com qualidade o caminho é a solidariedade de classe

A luta pela assistência à saúde de qualidade revela uma das fragilidades do movimento sindical da atualidade. Ao contrário dos seus primórdios, quando ainda não estavam atrelados ao Estado e lutavam de forma autônoma pelos interesses legítimos do proletariado, hoje o movimento sindical se limita ao corporativismo e a um economicismo limitado. O assistencialismo chega a um ponto tal que a luta por um sistema público universal, gratuito e de qualidade é substituída pela barganha por planos privados. Planos esses, de baixo custo, que em geral pagam apenas uma consulta em “trambiclínicas”, mas quando é preciso ter acesso a exames e medicamentos mais caros o proletário acaba caindo na longa fila da rede estatal.

Essa breve análise da política de saúde do Capital traz uma reflexão sobre o movimento operário. Quando parcela do proletariado luta apenas por seus interesses específicos, desarticulados do restante da classe, tentando apenas preservar conquistas, sem ampliá-las para toda a classe, o capital prejudica a vida de todos. Nenhuma luta proletária deveria estar isolada daquelas categorias essenciais ao bem estar de nossa classe, como a dos trabalhadores da saúde, limpeza, educação, agroindústria, construção civil, etc. É preciso substituir o corporativismo e o assistencialismo pela luta comum, em nome da imensa maioria da sociedade. E a única classe capaz de levar esse propósito às últimas consequências é justamente o proletariado.♟