Perfis da Esquerda Comunista: Anton Pannekoek

Perfis da Esquerda Comunista: Anton Pannekoek

Com este número iniciamos uma nova série em nosso Boletim: a de perfis históricos que marcaram os contornos teóricos e práticos da Esquerda Comunista Germano-Holandesa (ECGH). Não por acaso escolhemos iniciar por aquele que foi considerado – entre outros atributos –  o mais rigoroso representante desta corrente e o único marxista de renome em seu tempo capaz de abordar qualquer problema ligado às ciências da natureza:  Anton Pannekoek.

Biografia: para entender a materialidade de suas formulações e de sua militância

Pannekoek viveu 87 anos (1873-1960). Holandês de nascimento, oriundo de família de camada média – o que lhe permitiu atingir os níveis mais altos de escolaridade. Com exceção do tempo em que viveu na Alemanha como funcionário do Partido Social-Democrata (1906-1914), trabalhou todo o restante de sua vida laborativa como astrônomo, onde atingiu reconhecimento mundial. O exercício desta profissão combinada à sua adesão ao marxismo aos 26 anos, desenvolveu nele determinadas qualidades intelectuais em graus muito elevados: a) capacidade de intuição teórica; b) poder de abstração; c) observação atenta; d) variedade e profundidade de conhecimentos; e) rigor e serenidade; f) entusiasmo revolucionário; g) habilidade oratória, e h) talento para polêmicas teóricas.

Ao longo de sua vida pode vivenciar toda uma série de conjunturas e sobre elas se manifestar, sempre na perspectiva do proletariado comunista. Duas guerras mundiais, a onda revolucionária europeia de 1917 a 1923, ascensão e queda dos primeiros regimes fascistas, o surgimento da bomba atômica e da guerra fria. Também se envolveu em inúmeras polêmicas dentro e fora do campo marxista. Polêmicas que foram desde o combate a concepções de  anarquistas, stalinistas, social-democratas e trotskistas até neokantianos, teólogos, místicos, idealistas e filósofos. Em todas elas sustentou a defesa do materialismo histórico e dialético (MHD) aplicado a situações concretas e contra conciliações oportunistas seja com religiões, governos, pensadores ou classes sociais não proletárias. Foi contemporâneo do aparecimento da forma institucional do comunismo pela primeira vez na história – o Sistema de Conselhos Proletários (SCP) – na Rússia, Alemanha, Hungria, Itália e todo um conjunto de outras regiões e sobre elas deixar escritos de espantosa atualidade, entre elas a sua obra principal “Os Conselhos Proletários” (1946).

Como cientista durante quase 30 anos, escreveu uma história popular da astronomia que não se limitou a reunir nomes de astrônomos famosos e grandes descobertas da área, mas ligou a progressão da ciência astronômica com as transformações das condições materiais, sociais e culturais e concebeu o desenvolvimento da noção de astronomia como uma manifestação do crescimento da espécie humana. Foi professor de matemática e física. Seu programa de pesquisas universitárias, pelos resultados alcançados, o colocaram como um dos maiores astrônomos de seu país e fundador da escola holandesa de astronomia. Foi o primeiro a desenvolver um método exato para analisar as nebulosas escuras, e pela aplicação desse método ao estudo da nebulosa de Touro, recebeu em 1936 o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Harvard (EUA). Pelo conjunto de suas pesquisas, foi sócio honorário da Sociedade Estadunidense de Astronomia, recebeu a medalha de ouro da Real Sociedade de Astronomia da Inglaterra (1951) e integrou a Real Academia de Ciências da Holanda.

“Fomos formados por meio de muita luta e dificuldade, assim chegamos a uma conquista segura. Do mesmo modo deverá fazer a juventude e o melhor que podemos fazer é permitir que penetrem em cada realidade, possivelmente de mais pontos de vista, para que formem uma opinião autônoma. Usar o próprio cérebro: esta é a melhor lição que podemos transmitir a ela. Sobretudo é um pensamento que hoje também deveria se tornar útil ao movimento operário”. Anton Pannekoek, sobre o significado de seu método e pensamento

Sua visão de mundo/ontologia foi formada durante os primeiros anos de 1900 e dela jamais se afastou: por um lado, a inovação central e revolucionária do MHD, consistente na ampliação do conceito de matéria às relações de produção, indo além de uma compreensão meramente física daquela; por outro, a relação entre subjetividade e  materialidade, entre sujeito e objeto, na qual a subjetividade é colocada numa posição ativa e passiva em relação ao mundo exterior (entendida como poder  de abstração e poder de distinção). Pannekoek entendia que a subjetividade é um produto material que interage com a materialidade recriando o mundo na cabeça das pessoas, fazendo com que cada um de nós possua o mundo duplamente, seja usufruindo-o materialmente, seja reconstruindo-o subjetivamente. Assim, ao situar sua ontologia num meio termo entre o determinismo absoluto e o subjetivismo, Pannekoek nos deixou uma arma valiosa para combater todos os idealismos (religiões, misticismos e conservadorismos), bem como todos os materialismos mecanicistas (liberalismos, bolchevismos e anarquismos).

Em 1901, Pannekoek publicou a obra “A Filosofia de Kant e o Marxismo”, na qual sintetizou sua posição de que entre as concepções desses pensadores não havia que procurar confluências, pois as contradições entre a cultura capitalista e a cultura comunista eram similares às contradições entre capitalismo e comunismo e que o advento deste último superará toda a ciência e os resultados filosóficos atingidos pelo pensamento burguês.

Da adesão ao marxismo ao final da fase social-democrata (1899-1914)

Nesses 15 anos, o esforço de síntese de Pannekoek se deu tanto por um conjunto de iniciativas políticas, quanto por seu envolvimento em polêmicas sobre a “crise do marxismo”, abordou também temas econômicos. Caracterizou-se desde o início como marxista intransigente que procurava cumprir o objetivo de politizar o proletariado via adesão e aplicação rigorosa das diretrizes e princípios programáticos. Ministrou cursos de divulgação das ciências naturais em articulação com a evolução histórica e social, foi orador em atos públicos pelo sufrágio universal, organizou eventos com a participação de políticos e teóricos de peso internacional, nas polêmicas sustentou que o comunismo será fruto da luta do proletariado contra os capitalistas e não o resultado de um “sentimento humanitário” ou da “evolução geral dos tempos”. Defendeu a completa laicidade do ensino contra os reformistas que queriam uma educação compatível com os princípios religiosos e, contra parlamentares e sindicalistas, sustentou o apoio incondicional âs iniciativas da base proletaria – greves, manifestações de massas e greves de solidariedade -, ao invés reduzir a força dessas ações em detrimento de negociações e da colaboração com o liberalismo de esquerda. Participou como delegado de congressos partidários e começou a estudar as divergências internas do movimento operário e socialista. Colaborou em diversos jornais e editou pelo menos dois deles. Rompe com o marxismo da II Internacional em 1914.

“O autêntico objetivo final da luta de classe proletária não é um dado Estado, por mais ‘democrático’, ‘comunal’ ou ‘conselhista’ que seja, mas a sociedade comunista sem classes e sem Estado, cuja forma de conjunto não é representada por este ou aquele poder político (…).” Karl Korsch

Das tentativas a um novo movimento às posições de maturidade (1915-1960)

Durante a I GM, Pannekoek orientou diversos grupos no sentido de retomar uma enérgica luta de classe do proletariado como a resposta mais coerente e internacionalista à guerra, mas constatou que a social-democracia enfraqueceu a classe com seus métodos de ação. Em 1918, durante a revolução alemã, escreveu profusamente tentando esclarecer o caminho revolucionário e demonstrar os efeitos nocivos das influências de quem se mantinha no terreno da democracia e da socialização entendida como estatização. Sua crítica definitiva a essa corrente aparece em 1920 no texto “Revolução Mundial e Tática Comunista”.

De 1921 à 1943 Pannekoek se concentrou em analisar as causas da derrota da revolução e em elaborar uma nova síntese de suas reflexões sobre as formas que essa revolução deveria assumir no futuro, atuando junto a pequenos grupos marginalizados e sem influência no movimento operário e socialista internacional. Dedicou-se ainda a apreciar questões de princípio surgidas de fatos concretos. Exemplos dessa fase foram os escritos “Princípio e Tática” (1927), “A Ação individual “ e “‘A destruição como forma de luta”, ambos de 1933. Realizou sua análise do fascismo em “A função do fascismo” (1936),  e completou sua crítica ao leninismo com a obra “Lênin Filósofo” (1938).

De 1943 até sua morte, deixou contribuições em temas como definições conceituais necessárias a uma retomada da da luta proletária ofensiva, como percebia a luta de classe pós II GM, o mundo no contexto da guerra fria, a guerra nuclear, concepção e função do partido, natureza da Revolução Russa.

No fim da vida, um octogenário Pannekoek continuou considerando imprescindível o protagonismo das massas proletárias agindo diretamente por meio de manifestações de rua, em defesa de seus interesses vitais. E alertou que EUA e URSS reagiriam às tentativas de uma saída revolucionária ao instável sistema capitalista mundial – privado e estatal – com um diversificado arsenal, o qual, no terreno da subjetividade  consistiria na instrumentalização de ideologias como a da defesa da pátria nacional e a dos valores universais da liberdade.♟