Antes de compreender o porquê desta nova proposta de reforma representar mais um dos inaceitáveis retrocessos que têm espaço no governo Bolsonaro, é importante compreender a origem da previdência. A ideia de uma proteção previdenciária surgiu na França em 1673, no entanto era destinada exclusivamente aos membros da marinha real. Com o tempo se estendeu a todo o funcionalismo público. Na época da revolução industrial, trabalhadores eram submetidos a duras condições de trabalho, com jornadas de até 18 horas, em locais insalubres e realizando atividades que os expunham constantemente a acidentes. Além disso, quando adoecia e não podia trabalhar o proletariado era privado de seu pagamento, perdendo as condições mínimas necessárias para sua sobrevivência.
Com o surgimento do movimento operário, trabalhadores auto-organizados criaram as “sociedades de ajuda mútua”. As “caixas” eram fruto da arrecadação de parte do salário de trabalhadores, e eram utilizadas para auxiliar o próprio trabalhador, em casos de doenças, ou sua família em caso de falecimento. Se, por um lado a previdência “estatal/oficial” teve o privilégio como um fundamento de origem, nas sociedades de ajuda mútua, pelo contrário, o que aparece como elemento fundante é a solidariedade de classe.
Por volta do final do século XIX, muitas destas caixas de trabalhadores já tinham um montante significativo em recursos, fato que já naquela época despertou o interesse de capitalistas. Aos poucos, ocorreu a cooptação do movimento operário autônomo para dentro de partidos e sindicatos (instituições que agem sob a inspeção do Estado). Para que o Estado pudesse tomar para si a administração dos recursos existentes, foi instituída a contribuição patronal e a participação sindical na administração dos fundos. Na mesma época, partidos social-democratas e trabalhistas adotam o caminho do reformismo, sendo os sindicatos os próximos a seguir esse rumo. Aos poucos os fundos de ajuda mútua transformaram-se nos sistemas previdenciários administrados pelos Estados. Essa é base sobre a qual surgiu a maior parte dos sistemas previdenciários, inclusive o brasileiro.
A atual proposta de reforma da previdência do governo Bolsonaro é o quarto ataque a uma questão vital para o proletariado desde a redemocratização. Como se não bastassem os decretos cada vez mais restritivos do INSS, esta edição segue aprofundando o projeto de longo prazo do capital, elaborado há mais de 30 anos por instituições internacionais dos capitalistas (Banco Mundial, FMI), para promover transferência de recursos de explorados para exploradores.
Na edição nº 16 do BB, demonstramos que os ataques às conquistas previdenciárias do proletariado não são novidade, tampouco exclusividade do governo reacionário atual. Nos últimos vinte anos, as diversas expressões da social-democracia brasileira — ensaiado por FHC e vencido por Lula —, reuniram esforços e levaram a cabo as reformas que aprofundaram as dificuldades do proletariado para acessar a previdência, diminuindo os valores da aposentadoria e aumentando o tempo de contribuição. Mas, indiferente aos posicionamentos ideológicos dos partidos que passaram pelo poder, o argumento comum para justificar as reformas é o da economia aos cofres públicos. Portanto, não é de surpreender que a mídia não canse de repetir o mantra do suposto déficit da previdência.
As classes dominantes, com auxílio dos jornais, TVs e discursos de “formadores de opinião” usam argumentos falaciosos para confundir o proletariado acerca do funcionamento do sistema previdenciário, a fim de convencê-lo a sacrificar sua aposentadoria sob pena de torná-la inviável e ainda prejudicar toda a economia do país. Entretanto, sabe-se que o déficit é resultado de cálculos manipulados por economistas burgueses. Segundo informações da ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal), os recursos da Seguridade Social são suficientes, contando com sobras financeiras ao fim de cada ano fiscal. Ao mesmo tempo que é disseminada a falsa ideia do déficit, os recursos previdenciários são subtraídos e centenas de bilhões de reais são realocados obscuramente, sem que a população se aperceba. No mais, ainda que o rombo fosse verdade, por que os proletários têm de ser penalizados, enquanto empresas e bancos sonegam em centenas de bilhões as contribuições fiscais destinadas à saúde e seguridade? Por qual razão trabalhadores devem aceitar os ataques aos seus direitos se não tiveram qualquer responsabilidade sobre as crises econômicas provocadas pelos gestores estatais?
“Qualquer reforma social tem uma face econômica favorável ao capitalista, assim como uma face político-ideológica. As leis sociais são menos ‘conquistas operárias’ do que uma integração da classe operária no sistema capitalista. Não existem portanto duas políticas de Estado, uma mais liberal e outra dita social.” — Tom Thomas
Ora, sem os cinismos dos jornais e dos discursos de figuras políticas, tornam-se claros os objetivos da reforma da previdência: transferir dinheiro do proletariado para as classes dominantes. O resultado é o aumento da jornada de trabalho em muitos anos e um futuro tenebroso para toda a nossa classe. Em sua sede por lucro imediato, os capitalistas estão colocando em risco a capacidade de sobrevivência física de milhões de pessoas que dependerão da aposentadoria para ter uma vida digna depois de décadas de exploração. No fim das contas, a aposentadoria se tornará mais um produto a ser capitalizado (vendido, comprado, especulado) no mercado financeiro do presente, para no futuro causar miséria e forçar ao trabalho massas de pessoas idosas.
Na tentativa de encobrir estas evidências, a atual proposta de reforma da previdência acena com a diminuição da alíquota de contribuição de parcela dos trabalhadores. Contudo, não se fala sobre o aumento do tempo de contribuição e de anos de trabalho para que se tenha acesso ao benefício integral da aposentadoria. Mesmo que uma pessoa alcance os requisitos para a aposentadoria integral, o valor final do benefício diminuirá, pois esse passa a ser calculado pela média de todos os salários da vida da pessoa.
A campanha publicitária institucional do governo, para atrair apoio das pessoas à reforma, argumenta que esta vem para colocar fim a privilégios. Todavia, ela não explica que a proposta reconhece como “ricos” aqueles que ganham salários a partir de R$ 2.231. Tampouco revela o fato de que a economia de 1 trilhão de reais que a proposta de reforma anuncia é principalmente fundada na redução de benefícios de seguridade social para mais de 35 milhões de pessoas, que em sua maioria (70%) recebem o piso do Salário Mínimo e nunca acima do teto de R$ 5.840. Em outras palavras, essa reforma não alcança as camadas privilegiadas da sociedade porque estas constituem uma minúscula fração dos contribuintes e beneficiários da previdência, e penaliza o proletariado ao cortar e dificultar o acesso a benefícios, e ampliar seus deveres contributivos.
“No Chile, 38 anos depois, o fracasso é provado em números. Quando foi apresentada, a capitalização pinochetista prometia um retorno de 70% do salário médio das contribuições. Mas hoje, a primeira leva de aposentados recebe em torno de 35% de sua renda média. A capitalização transformou adultos de classe média em idosos pobres.” — Andras Uthoff
A reforma da previdência está sendo construída e defendida por burgueses e gestores que sequer se utilizam dos serviços públicos de seguridade social, porque conseguem ter acesso a serviços privados de melhor qualidade. Para estas pessoas, que não têm sua sobrevivência e bem-estar atingidos pelas mudanças propostas, trata-se apenas da criação de um ambiente mais favorável aos seus negócios e à acumulação de seu capital.
Na outra via, para o proletariado, essa reforma significa a impossibilidade de uma velhice digna e saudável. Diante da insuficiência do mercado formal de trabalho em prover meios para suprir as necessidades de sobrevivência, aumenta a procura por atividades informais, flexibilizadas e/ou desregulamentadas de trabalho – em que a força de trabalho passa a ter um valor ainda menor.
Com tantas medidas que mutilam conquistas coletivas duramente alcançadas pelos que sustentam a sociedade com o seu trabalho, percebe-se a ineficácia da democracia representativa para defender nossos interesses: acesso irrestrito à saúde, moradia, transporte, educação, lazer e conforto. Em tempos de alta das ideologias individualistas, de precarização sistemática das condições de trabalho e vida do proletariado, e de quebra da memória histórica da classe, a democracia opera como um eficiente método de controle social que contribui para dispersar e fragmentar a resistência a esses ataques que nos atingem profundamente – situação que só poderá ser revertida com a nossa auto-organização a partir de nossos locais de trabalho, estudo e moradia.♟