Redução da jornada de trabalho: uma bandeira histórica adormecida

Redução da jornada de trabalho: uma bandeira histórica adormecida

A história do proletariado é a história da luta contra a exploração. Apesar de não termos presenciado lutas proletárias auto-organizadas em escala global nas últimas décadas, é impossível não perceber que cada vez mais os capitalistas impõem suas necessidades de classe sobre nossos corpos e mentes, tanto no ambiente de trabalho quanto no que nos resta de tempo livre. A jornada de trabalho de 8 horas diárias é uma conquista de mais de cem anos, mas de lá pra cá os gigantescos avanços tecnológicos não se refletiram em redução da exploração, pelo contrário, as formas de se vender força de trabalho foram diversificadas ao ponto de o trabalho (ou a falta dele) permear cada minuto dos nossos dias. É preciso entender as origens desse problema e retomar essa luta enquanto classe.

Por que trabalhamos tanto?

Despossuído dos meios de produção, o proletariado foi submetido ao jugo das classes detentoras do capital desde os seus primórdios, quando as tecnologias do trabalho estavam no seu nível mais rústico de desenvolvimento e a mais-valia absoluta era a forma predominante de exploração do trabalho. Essa exploração inicialmente se impôs com jornadas de trabalho extenuantes, para muito além do trabalho necessário à produção e reprodução da vida, ou seja, tudo o que for necessário para a vida em sociedade. Isso perdurou de forma intensa desde o século XIV até a metade do século XVII, nos primeiros países capitalistas do norte europeu.

Porém, junto com esse regime laboral extremamente abusivo que, diga-se de passagem, chegou após um longo período de escravidão e servidão na história da humanidade, o capitalismo trouxe grandes progressos. Foi uma época de crescente desenvolvimento dos meios de transformação da natureza: novas ferramentas, máquinas e os diversos utensílios que facilitaram o nosso dia-a-dia e nos tornaram cada vez menos dependentes de intempéries. Mas se as máquinas permitiram extrair do proletariado o mesmo valor em um tempo mais curto, isso não significou uma redução proporcional do tempo dedicado ao trabalho. O resultado foi um só: o aumento da exploração e o consequente acúmulo de capital. E o que hoje vemos como um absurdo, como um “regime análogo à escravidão”, na época em que Marx publicou O Capital (1867) ainda era algo habitual: jornadas de trabalho que por vezes ultrapassavam as 24 horas sem descanso e eram recompensadas apenas com a subsistência necessária para seguir trabalhando.

O trabalhador fica mais pobre à medida que produz mais riqueza e sua produção cresce em força e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria ainda mais barata à medida que cria mais bens. A desvalorização do mundo humano aumenta na razão direta do aumento de valor do mundo das coisas. O trabalho não cria apenas bens; ele também produz a si mesmo e o trabalhador como uma mercadoria, e, deveras, na mesma proporção em que produz bens.” — Erich Fromm

Jornada de trabalho como luta de classes

Naquele período inicial, mais brutal do capitalismo, as leis só faziam aumentar a jornada de trabalho. Porém, após muitas lutas, os trabalhadores ingleses conquistaram a redução da jornada de trabalho para 12 horas, no final do século XIX. E mesmo assim, essa jornada de trabalho “reduzida” geralmente era restrita a adolescentes entre 13 e 16 anos. O trabalho infantil era comum e defendido por uma ideologia que dizia livrar as crianças de “perderem a pureza de suas almas” nas ruas.

Em reação à primeira revolução industrial, no início do século XIX, ocorreram as revoltas dos ludistas. Naquela época não se percebia as máquinas como ferramentas que aumentavam exponencialmente a exploração, mas como causadoras da redução de empregos e de salários. De forma muito parecida se deram as primeiras lutas das Trade Unions (os sindicatos) inglesas, que lutavam contra condições de trabalho degradantes. Para eles o problema não era a exploração em si, mas o grau de exploração do trabalho empregado pela burguesia inglesa. É nesse contexto que surge a regulamentação da jornada de trabalho, pela limitação e redução da sua duração, um dos primeiros embates entre capitalistas e proletariado industrial.

Apesar da luta pela redução da jornada de trabalho ser muito antiga, as 44 horas semanais foram conquistadas somente após o desenvolvimento de um novo padrão de acumulação de capital, mais intensivo, no início do século XX: o taylorismo/fordismo. Mais tarde, com a crise de 1973, o modelo fordista se mostra insuficiente para as novas necessidade de acumulação de capital e a burguesia passa a gestar e construir um novo padrão de acumulação, agora mais “flexível”: o ohnismo/toyotismo. Ambos modelos perduram até hoje, mas aplicados de forma heterogênea. Enquanto o fordismo ficou marcado pelo relógio do encarregado, que cuidava minuciosamente os períodos de descanso e o tempo necessário de para produzir determinada quantidade de mercadoria em cada etapa da produção, o toyotismo transformou cada operário em um “encarregado” de si mesmo e dos outros, responsável por cobrar de todo o grupo de trabalho do qual faz parte as metas de produção; além de produzir somente o necessário no momento certo. Assim, o Capital pulveriza o proletariado em núcleos de produção menores para lhes explorar com mais intensidade a sua componente intelectual e passa a nos chamar de “colaboradores”. Isso permitiu uma exploração tão intensa da classe que o trabalho excedente aumentou até mesmo com jornadas de trabalho menores.

Atualmente, as ofensivas se dão no sentido de dissolver a noção de hora e local de produção. Modelos como o home office e trabalho intermitente via aplicativos, teletrabalho, informalidade e pejotização apenas confirmam a alta capacidade ideológica e de adaptação do capitalismo. Aqueles que sobrevivem da venda de sua força de trabalho vivem cada vez mais a incerteza sobre o quanto irão trabalhar e por qual valor, e se dispõem a abrir mão do seu tempo livre, das horas de sono, e da saúde. Os dispositivos móveis com conexão à internet fazem com que até mesmo empregados com jornada definida tenham que ficar de sobreaviso às ordens dos gestores independente da hora e do dia da semana.

A Pandemia da COVID-19 reforçou ainda mais a ideologia da colaboração com as classes capitalistas. O medo de ser mais um entre tantos demitidos nos diversos locais de trabalho, somado à ideologia de recuperação da economia, que estaria em crise, estancou até mesmo as lutas por melhores condições nos locais de trabalho. A única redução da jornada de trabalho que testemunhamos foi proposta pelos próprios capitalistas e veio acompanhada pela óbvia redução nos salários. Diante da propagação da ideia de que são tempos difíceis e que é preciso se sacrificar para “sairmos dessa”, os gestores apertam ainda mais as lacunas de descanso e não-trabalho, de um modo geral, durante a jornada, que pode até ser diminuída quantitativamente, mas a exploração, a mais-valia, o acúmulo de Capital e o tempo de trabalho excedente aumentam cada vez mais. Prova disso é que em 1 ano de pandemia no Brasil surgiram 20 novos bilionários e mais de 2 milhões de desempregados.

Pesquisas recentes mostram que cresce exponencialmente o número de pessoas que acordam uma ou mais vezes durante a noite para checar mensagens ou informações. Uma figura de linguagem recorrente e aparentemente inócua é o “sleep mode”, inspirada nas máquinas. A ideia de um aparelho em modo de consumo reduzido e de prontidão transforma o sentido mais amplo do sono em uma mera condição adiada ou diminuída de operacionalidade e acesso. Ela supera a lógica do desligado / ligado, de maneira que nada está fundamentalmente “desligado” e não há nunca um estado real de repouso.” — Jonathan Crary

O tempo livre como emancipação

O proletariado consciente não cai nessas artimanhas ideológicas. A transformação da natureza por meio do trabalho deve servir para produzir a satisfação de nossas necessidades e não valor. Consequentemente, toda a luta do proletariado deve ser para que não haja acúmulo de capital, para que o tempo de trabalho seja reduzido ao necessário, sem excedentes. Qualquer concessão por parte do proletariado, nesse sentido, sempre será uma concessão para a exploração. Uma concessão para as doenças osteomusculares relacionadas ao trabalho intensificadas pelos movimentos repetitivos e monótonos do fordismo e às doenças mentais associadas ao aumento da cobrança no toyotismo, com seu just-in-time, círculos de controle de qualidade e metas inalcançáveis de produção. Sem tempo livre adoecemos e, por mais que sejamos remunerados, aposentados, reabilitados ou recebamos auxílio-doença por consequência, pelo Estado ou por planos de saúde privados, não podemos aceitar que nossos corpos e mentes se adaptem ao trabalho: o trabalho é que deve se adaptar ao proletariado.

Enquanto alguns burgueses já estão passeando em foguetes espaciais, nós ainda trabalhamos as mesmas horas da época em que foram criados os primeiros aviões. Os avanços tecnológicos do último século foram direcionados para intensificar a extração de mais-valia, propiciar maior concorrência entre capitalistas e gerar maior controle sobre os explorados, enquanto que as campanhas por maiores salários foram absorvidas pela economia de mercado.

Atualmente, uma luta por redução generalizada na quantidade de horas trabalhadas poderia ser um bom começo para o proletariado se unir e sair da passividade em que se encontra, além de, quem sabe, retomar seu protagonismo político. Isso porque é uma bandeira classista em sua essência, que não se confunde com identitarismos, e que há muito tempo foi abandonada pela socialdemocracia em seus programas partidários e sindicais, sempre comprometidos com o bem-estar da economia capitalista. Uma luta que bate de frente com o nacionalismo desenvolvimentista da esquerda do Capital.

Estamos trabalhando demais e cada vez mais. Mesmo nos marcos capitalistas precisamos conquistar mais tempo livre, que é um dos fundamentos da sociedade que queremos construir. Tempo livre para descansar, desenvolver nossas mentes e criar laços de camaradagem que nos permitirão um dia sermos senhores do nosso próprio tempo.♟