Reforma Administrativa e precarização do proletariado estatal

Reforma Administrativa e precarização do proletariado estatal

Está em análise no Congresso Nacional um projeto de Reforma Administrativa (PEC 32/2020) elaborado por Paulo Guedes e apresentado por Bolsonaro que promete modernizar a Administração Pública no Brasil, tornando-a mais eficiente, eficaz e efetiva, mas para quem? Analisando a proposta mais detalhadamente o que se vê são basicamente três eixos: maior poder político aos chefes do Executivo e ao Legislativo, novas oportunidades de ganhos à burguesia e, principalmente, precarização das condições de trabalho e dos serviços públicos.

O Estado brasileiro já operou sob três principais modelos teóricos de gestão. Inicialmente pautada pelo patrimonialismo, a atuação estatal guiava-se meramente pela vontade de quem estava em seu comando, que se apropriava daquela estrutura para se perpetuar no poder sem qualquer preocupação com demandas sociais. Após a crise de 1929, Getúlio Vargas decide utilizar o Estado como motor de uma recuperação econômica e, com a criação do DASP (Departamento Administrativo do Setor Público) em 1938, instaura o modelo burocrático (inspirado em Max Weber). Com isso são introduzidas noções de fiscalização, planejamento orçamentário, impessoalidade, meritocracia, carreiras e concursos públicos para os servidores. O terceiro e atual modelo é o gerencial, ensaiado durante a ditadura civil-militar e implementado no governo FHC por Bresser-Pereira, se propunha a desburocratizar e reduzir a máquina pública, principalmente em relação à influência do Estado no mercado. Foi a base teórica para a onda de privatizações das empresas estatais e dos serviços públicos essenciais que seguiu firme nos governos do PT.

Agora, Paulo Guedes, notório parasita do mercado financeiro, sem nenhum histórico de atuação na Administração Pública ou qualificação acadêmica para tal, baseia seu projeto em estudos do Banco Mundial e afirma que é preciso evitar o colapso no orçamento e na prestação dos serviços públicos. Porém, em relação às receitas orçamentárias, nada menciona sobre a ausência de tributação sobre as grandes fortunas, lucros e dividendos. Já em relação às despesas, passa em branco o fato de que praticamente 60% do orçamento é comprometido com o pagamento de juros da dívida pública, o que transforma o Brasil em um paraíso para a burguesia rentista. O atual ministro da economia ainda afirma (sem citar qualquer fonte) que a percepção do cidadão é a de que o “Estado” custa muito e entrega pouco. Realmente, a título de exemplo, entrega poucos leitos de UTI, poucas vacinas, poucos respiradores, enquanto os servidores do SUS entregam suas vidas para salvar as de milhões. E todos aqueles trabalhadores que ingressarem no serviço público após a aprovação da Reforma irão encontrar condições de trabalho ainda piores.

Quem perde

Já faz alguns anos que a burguesia brasileira vem manifestando o desejo de precarizar o proletariado estatal assim como faz constantemente na iniciativa privada, para que assim as carreiras públicas não ofereçam condições que o mercado não está disposto a conceder e deixem de significar um refúgio de força de trabalho qualificada.

Sob o aspecto jurídico, a atual proposta de reforma retira várias garantias dos servidores que estão previstas no texto da Constituição e deixa em aberto para futuras regulamentações por meio de leis ordinárias e complementares, ou seja, as condições de trabalho irão variar conforme os ventos do Poder Legislativo da União, Estados e Municípios.

Além de vários ataques a direitos trabalhistas, a garantia de estabilidade praticamente deixará de existir, pois bastará uma decisão judicial em segunda instância para a perda do cargo, ou então uma reprovação em avaliação de desempenho cujos critérios dependerão de leis futuras que poderão ser facilmente alteradas. Também se pretende construir um cenário futuro no qual a maior parte do funcionalismo não tenha sido selecionada por concurso público de provas e títulos. Isso porque o projeto amplia as hipóteses de contratação temporária (via processo seletivo simplificado) com vínculo de CLT e cria os “cargos de liderança e assessoramento” que serão de livre nomeação pelo chefe de cada Poder, sendo que atualmente boa parte das funções de direção, chefia e assessoramento só podem ser preenchidas por servidores de carreira.

Outro ataque diz respeito ao regime de previdência, pois caberá aos estados e municípios decidirem migrar ou não seus servidores para o regime geral de previdência (INSS) com aposentadorias muito menores, o que é intencional, já que eles acabarão recorrendo às previdências complementares (de propriedade de grandes grupos financeiros).

O trabalho improdutivo abrange um amplo leque de assalariados, desde aqueles inseridos no setor de serviços, bancos, comércio, turismo, serviços públicos etc. (…) Eles pertencem àqueles ‘falsos custos e despesas inúteis’, os quais são, entretanto, absolutamente vitais para a sobrevivência do sistema” — Ricardo Antunes

Quem ganha

Há também a proposição de um aumento de poderes para os chefes do Executivo, sendo que se a proposta não for alterada, o Presidente da República poderá até mesmo extinguir, por meio de decreto, autarquias, fundações públicas e agências reguladoras, como por exemplo Universidades e Institutos Federais de Educação, IBAMA, ANVISA, INSS, etc. Apesar de ser o sonho de Bolsonaro, os parlamentares provavelmente não permitirão isso porque colocaria fim a milhares de cargos de chefia que esses órgãos lhes permitem leiloar politicamente.

O texto da PEC também prevê novas possibilidades de cooperação com o setor privado na prestação de serviços públicos, o que na prática significa mais terceirização e repasse de verbas para o mercado, abrindo a possibilidade de futuras contratações de particulares em substituição a servidores em greve.

Em resumo, trata-se de um retorno ao patrimonialismo disfarçado de evolução gestorial. Políticos terão muito mais liberdade para alterar a estrutura da Administração Pública, que consideram engessada, irão dispor de muito mais cargos para nomear seus aliados e terão muito mais poder para intensificar a exploração dos servidores. A tendência é a piora na prestação dos serviços, com menos trabalhadores e mais trabalho, menos verbas e menor profissionalização. Com esse sucateamento sai ganhando a burguesia, principalmente da saúde e da educação, bem como as OSCIP’s, OS’s, ONG’s e também os grupos financeiros de previdência privada.

Ressalte-se que diante de tantos ataques ao proletariado estatal a PEC é clara: nenhuma das alterações se aplica aos ocupantes de “cargo típico de Estado”, ou seja, juízes, ministros, promotores, delegados, oficiais das forças armadas, diplomatas, políticos entre outros. Estes são os gestores da máquina pública, são os que se apropriam de subsídios, auxílios diversos e verbas gigantescas, possuem controle do próprio tempo de trabalho e controlam o trabalho dos servidores. Na ausência de uma burguesia estatal são eles a classe capitalista no comando do Estado. Fica claro que essa reforma é apenas mais uma manifestação da aliança entre gestores e burguesia em prol dos interesses do capital.

Se a mais-valia é apropriada por uma dada instituição, tanto privada como pública, quem controla superiormente essa instituição apodera-se da mais-valia e determina – certamente em beneficio próprio – as modalidades de repartição interna” — João Bernardo

Perspectivas de luta

Esse projeto de reforma é também a expressão jurídica de uma tentativa de intensificar as divisões presentes no proletariado atual. Nas diversas repartições estatais existe a classe capitalista dos gestores e uma massa de proletários que não se identificam entre si e não lutam de forma conjunta. Uma parte é composta de servidores estatutários, outra de empregados públicos (CLT), havendo ainda os temporários, os estagiários e, por fim, os terceirizados, desvinculados da atividade fim do órgão mas sem os quais esse não funciona. Em virtude das diferenças no regime de exploração esses vendedores de força de trabalho automaticamente se segregam como se vivessem em realidades paralelas e essa distância fica ainda maior quando se comparam com os trabalhadores da iniciativa privada, que consideram todos eles como “privilegiados”, sendo que o que hoje é considerado privilégio de poucos um dia já foi direito de muitos.

Mas não é apenas a burguesia e os gestores estatais que alimentam essa fragmentação. O principal responsável é um inimigo interno: o sindicalismo. Esse falso aliado da classe faz com que ela reproduza em suas lutas as divisões impostas pelo capital, sejam elas territoriais, legais, salariais ou cronológicas. Assim, se tomarmos como exemplo uma greve dos trabalhadores da educação, nunca haverá, dentro dos moldes capitalistas, uma luta que una todos os proletários envolvidos no processo educacional (formação de novos trabalhadores), pois há um sindicato para os professores de escolas privadas, uma associação para os professores de escolas estatais, outro sindicato para os zeladores das escolas, outro para os que imprimem o material didático, ou para os que fabricam as mesas, e assim por diante. E o mesmo ocorre na saúde, nos transportes e em cada ramo fundamental da reprodução da vida material.

Dessa forma, a falta de articulação entre proletários estatais ou privados não se sustenta sob uma ótica anticapitalista, pois não se deve acreditar que a burguesia vai precarizar uma parcela do proletariado para beneficiar outra. A única resistência possível se dará de forma autônoma e solidária contra os verdadeiros inimigos da classe.♟