Revoltas na América do Sul
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Revoltas na América do Sul

No segundo semestre de 2019 teve início uma série de revoltas na América do Sul e algumas perduram ainda neste início de 2020. Colômbia, Equador, Bolívia e Chile são países com realidades diferentes, com pautas diferentes, mas seus levantes possuem alguns elementos em comum.

No Equador, as manifestações se iniciaram contra o fim de um subsídio estatal de mais de trinta anos sobre os combustíveis, medida imposta pelo FMI. Como o aumento no valor dos combustíveis encarece todos os itens da cadeia produtiva, isso representou a gota d’água na deterioração das condições de vida da população. As manifestações no Equador alcançaram uma proporção tão grande que, em outubro, o governo mudou sua sede de Quito para Guayaquil.

Naquele país, o proletariado não atuou nesses protestos como classe, mas como um aglomerado de cidadãos. O protagonismo dessas lutas ficou a cargo dos indígenas. Há uma junção entre as camadas médias, o proletariado (enquanto indivíduos) e os indígenas ao redor de pautas que diminuam a precarização da reprodução da vida material. Toda essa revolta foi concentrada contra o governo do social-democrata Lenín Moreno, que a reprimiu com violência. Devido à intensidade dos protestos, o presidente foi obrigado a rever o fim do subsídio dos combustíveis, como também outras medidas de austeridade econômica.

Já na Bolívia, ocorreu uma revolta intra-burguesa a partir de uma crise institucional, pois em fevereiro de 2019 havia sido realizado um referendo no qual a maioria dos eleitores se posicionou contrária à reforma constitucional que permitia a Evo Morales disputar o quarto mandato presidencial consecutivo. Apesar disso, ele insistiu em se candidatar com o aval do Tribunal Superior Eleitoral e, em outubro, se reelegeu. Foi um prato cheio para a extrema-direita, que alegou fraudes na apuração dos votos e deu um golpe de Estado com o apoio das forças armadas.

Vidas foram perdidas em protestos de povos indígenas contra o golpe, mas não conseguiram freá-lo. Não há novidade no fato de que a burguesia não respeita leis nem resultados de urnas, principalmente abaixo da linha do Equador. Tanto no jogo político boliviano como no equatoriano, há uma disputa entre o imperialismo dos EUA e o imperialismo sino-russo. O proletariado boliviano, refém desse xadrez, não teve protagonismo nem na derrubada nem na resistência do governo Evo Morales. Chama a atenção não terem ocorrido grandes mobilizações das organizações indígenas ou mineradoras como na Revolução de 1952 e na Guerra da Água em 2000, setores esses que foram base de apoio do governo Evo.

Assim como no Brasil em 2013, as revoltas no Chile se iniciaram por causa do aumento da tarifa do transporte público, especificamente dos metrôs. O modelo econômico chileno implementado após a redemocratização em 1990, que não é o mesmo do governo Pinochet, acabou empobrecendo a maioria das famílias chilenas. É emblemático o que ocorre com os aposentados e estudantes chilenos: a juventude tem muitas dificuldades para poder concluir seus estudos básicos e os idosos mal cobrem suas necessidades mínimas com suas pensões.

O presidente chileno, de centro-direita, Sebastián Piñera, que é filho de um ministro da ditadura Pinochet e que possui uma fortuna de US$ 2,8 bilhões, reprimiu violentamente os protestos, causando assim mais de uma dezena de mortos. Para tanto, utilizou práticas do regime ditatorial que já haviam sido banidas, como as batidas policiais noturnas. Porém, a população não se intimidou com tais medidas repressivas ou com a violência dos pacos (policiais) e fez com que o governo voltasse atrás no aumento das passagens do metrô, além de prometer uma constituinte para substituir a constituição pinochetista que ainda está em vigor.

As manifestações são chamadas por organizações estudantis e por grupos dos bairros de Santiago. Há nessa luta um caráter popular e espontâneo, o que não significa que seja classista ou autônoma.

A luta do proletariado contra a burguesia, embora não seja na essência uma luta nacional, reveste-e dessa forma num primeiro momento.” — Karl Marx e Friederich Engels

Na Colômbia, as manifestações, com caráter policlassista, começaram no último novembro e duram até o presente momento. O estopim desses protestos foi uma reforma na previdência, porém, semelhante ao ocorrido no Equador e no Chile, as reivindicações extrapolaram a pauta inicial. Semelhante ao ocorrido nos outros países aqui referidos, tais revoltas têm sua origem na piora das condições de vida da população, tendo com isso um caráter democrático e popular de rejeição ampla aos governantes atuais.

Sendo assim, a indignação da população não se manteve apenas contra o presidente Iván Duque, de centro-direita, mas se estendeu a outros políticos, independentemente de seus partidos. Isso pode ser constatado no episódio contra a prefeita de Bogotá, Claudia López, que é a primeira mulher prefeita da cidade e homossexual declarada. Ela foi eleita pela centro-esquerda e apoiava os protestos, porém, após os manifestantes iniciarem um ataque a um ônibus do transporte público daquele município, foram reprimidos pela polícia municipal com extrema violência.

Nas sociedades contemporâneas, o peso das práticas sociais que tendem a integrar indivíduos e grupos sociais pertencentes a classes sociais antagônicas é muito grande. Essas práticas são realizadas a todo o momento nas instituições de consumo, de lazer, na escola, nos partidos políticos, nas instituições religiosas, etc. Em momentos de ascenso revolucionário, elas acabam sendo negadas na prática, através da criação de novas instituições sociais – as comissões autônomas, os comitês de moradores, etc. Mas para que elas se desenvolvam e se generalizem é fundamental a expansão das diversas lutas, ultrapassando, assim, o localismo em que surgem. Não é possível a existência de “ilhas” autônomas num contexto capitalista.” — Lúcia Bruno

O governo colombiano, observando os outros países da América do Sul, resolveu negociar diretamente com o Congresso, escanteando a população do processo. A esquerda do capital colombiana mais que rapidamente se prontificou a negociar. Assim como no Equador e na Bolívia, o sindicalismo se colocou à disposição do governo para ser o conciliador entre a burguesia e o proletariado. Nesse país andino, não por acaso, a CUT (colombiana) tem uma agenda conciliatória e democrática.

O que há em comum em todas essas lutas é que surgem do fato de que mesmo os governos progressistas não conseguem melhorar e nem sequer travar a deterioração nas condições de vida da população. No entanto, a paralisia do proletariado enquanto classe faz com que essas revoltas tenham um horizonte reformista e democrático.

A falta de projetos para além do Estado e do capitalismo resulta em dois caminhos: ou o proletariado fica apático enquanto classe, como na Bolívia; ou se permite enquadrar nas engrenagens dos partidos da esquerda do capital e suas organizações sindicais. E como já afirmamos, tais instituições se propõem apenas a conciliar os interesses dos capitalistas junto ao proletariado, ou seja, mesmo quando as lutas parecerem vitoriosas apenas terão como resultado um aperfeiçoamento capitalista na capacidade de exploração.

Diante desse cenário, vale a pena lembrar o exemplo de Oaxaca (México) em 2006. Naquela ocasião, o proletariado da educação deflagrou uma greve não só por reajustes salariais, mas pela melhora nas condições de vida miseráveis das crianças que frequentavam as escolas. O engajamento popular foi tamanho que os diversos povos indígenas e camponeses da região se juntaram às assembleias dos professores e formaram-se assembleias gerais em que se passou a decidir como gerir todos os aspectos da vida na região à revelia de qualquer poder estatal.

A burguesia local chegou a contratar sicários e convocar as forças federais para retomar seu controle. Foi algo de menor proporção numérica e geográfica se compararmos com as revoltas atuais, porém tem muito mais a ensinar sobre autonomia e sobre a ideia de fundir o plano político ao econômico da vida material.

Diariamente o capital nos nega qualquer possibilidade de melhoria radical das nossas vidas e continuará negando enquanto lhe conferirmos esse poder. O proletariado precisa pensar a possibilidade de uma outra sociedade e construir organizações que sejam ferramentas para esse novo modo de vida. Essas organizações precisam funcionar de forma horizontal e autônoma, ou seja, sem hierarquias e independentes de instituições da ordem burguesa.

Também é preciso conectar e unificar as lutas locais com as regionais e as internacionais. Não será a luta em um só país que logrará a construção de outra sociedade. Hoje temos vários povos vizinhos, de mesmo idioma, em revolta, travando batalhas que permanecem limitadas à soberania de cada país respectivo. Devemos unir nossos esforços internacionalmente, pois o proletariado é uma classe mundial e os capitalistas, conscientes, atuam globalmente.

Além disso, manter as lutas restritas a um só país pode levar a armadilhas de bandeiras legalistas, nacionalistas e xenófobas, próprias da extrema-direita. Por isso o internacionalismo é princípio caro ao proletariado.♟