Revoltas na França

Revoltas na França

A França está num momento crítico de sua história. Crise social aguda, guerra na Europa, retirada de direitos trabalhistas, precarização da aposentadoria, repressão interna da polícia, perseguição a refugiados e incertezas sobre o futuro do país e do continente. A situação econômica se agrava mais ao se deixar arrastar pelos EUA para a guerra da OTAN contra a Rússia. As sanções afetam pesadamente a economia da Europa e trazem riscos de escalar esse conflito.

Desde 2015 o país vive o que as elites chamam de “crise dos refugiados” (BB 80), embora a França seja o país que menos acolheu refugiados na Europa. Ainda assim, a direita xenófoba no país propaga que o país está sendo invadido.

As restrições às políticas migratórias fizeram com que muitas pessoas que buscavam asilo passassem a viver nas ruas de Paris, fomentando a multiplicação do lumpesinato. Hoje mais de 11 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza. Ao mesmo tempo, há um incremento da precarização do trabalho, da informalidade e da terceirização.

Outras lutas e reivindicações que já estavam em curso convergiram nesse momento para agigantar as manifestações em torno da questão da reforma da previdência: mudanças climáticas, reajuste do salário-mínimo, visto de pessoas indocumentadas, volta do imposto sobre fortunas, entre outras. É nesse contexto que se dá a luta contra essa nova reforma da previdência.

Um país com longa história de lutas de classes

Em 1789, a Revolução Francesa derrubou o absolutismo na França, pautada nos valores iluministas de “liberdade, igualdade e fraternidade”, levando ao poder a classe burguesa.

Em 1871, a França viveu uma das mais inspiradoras experiências da humanidade – a Comuna de Paris (BB 66). Mesmo durando apenas 72 dias, marcou profundamente pois foi o primeiro governo proletário da história, determinante para o desenvolvimento prático e teórico da luta de classes. Estabeleceu avanços profundos para a época e deixou lições históricas que impactaram as gerações futuras de franceses. Essa herança de lutas também se faz presente nos descendentes de ex-colônias, sobretudo na África, que lutaram pela independência e ainda hoje travam lutas importantes contra o capitalismo do centro do sistema, incluída a própria França que acumulou fortunas a partir de suas colônias espalhadas por todo o planeta: do Haiti à Argélia, do Quebec ao Vietnã.

Essa situação de força do capital de origem francesa, permitiu que internamente o estado francês implementasse políticas distributivas menos desiguais, o chamado “estado de bem-estar social”. Contudo, não raro tais benefícios foram reservados apenas aos franceses considerados “legítimos”, excluindo aqueles que, mesmo vivendo ou nascendo em solo francês, descendem de povos colonizados.

Macron se elegeu pela primeira vez em 2017 com o discurso de que era “de fora da política” e que superaria a polarização entre direita e esquerda. Em um pleito marcado pela abstenção, o atual presidente teve apenas 20 milhões de votos, no primeiro turno foram 8 milhões, em um país com 70 milhões de pessoas. Anteriormente Macron já havia tentado aprovar uma reforma da previdência mas foi derrotado pelas mobilizações. Ainda assim, conseguiu se reeleger em 2022 com 9 milhões de votos no primeiro turno e 18 milhões no segundo. Menos que na primeira vez. Sem dúvida, Macron se beneficiou por se apresentar contra a candidata de extrema direita Marine Le Pen que cresceu na cena política francesa nos últimos tempos, expressão de crescimento dessa corrente em nível internacional. Na França participar da vida política do país é mais que votar. A participação direta é valorizada, pois foi assim que sua história foi construída.

Embora Macron se dissesse um outsider da política tradicional, sua linha é liberal tradicional desde o início, com ataques frontais aos direitos sociais e trabalhistas, além de deixar claro seu posicionamento de classe ao derrubar o imposto sobre as fortunas.

“Uma ‘novidade’ no campo político deve ser esmagadoramente afirmativa, a negação constitui apenas uma segunda determinação. Francamente, ‘dizer coisas ruins’ sobre o capitalismo não o prejudica muito.” — Alain Badiou

A previdência e o mundo do trabalho

O projeto atual de reforma foi anunciado em janeiro sendo reprovado por 75% da população em geral e 92% dos trabalhadores sindicalizados. As principais alterações são o aumento da idade mínima de 62 para 64 anos e o aumento do tempo de contribuição para receber a aposentadoria integral, dentre outros. Assim como no Brasil, o discurso do governo é de que a reforma é necessária para não afundar a economia do país com o envelhecimento da população. Os governos (de lá e daqui) fingem ignorar que houve um aumento significativo da produtividade dos trabalhadores nos últimos anos, que existe um contingente de desempregados que poderiam contribuir desde que houvesse políticas de emprego e eliminação dos orçamentos dos governos imensos subsídios para grandes empresas e isenções de impostos para a burguesia, ou seja, para eles nunca falta dinheiro. Na verdade, o que está em disputa nesse momento é: quem vai pagar a conta da guerra contra a Rússia? Apenas em março foram mais de 3,5 milhões de pessoas se mobilizando contra a reforma de Macron. Nem em maio de 1968 houve tanta gente assim nas ruas de Paris. Se por um lado aumentam as mobilizações, por outro aumentam a repressão generalizada e o grau de letalidade dos armamentos utilizados contra grevistas e manifestantes. Mesmo com toda repressão e sob chuva congelante, cerca de dois milhões de pessoas tomaram as ruas indicando que os trabalhadores franceses (diferentemente do que fizemos aqui) estão dispostos a lutar bravamente contra o aumento da idade da aposentadoria dos 62 para os 64 anos.

Obviamente a imprensa corporativa retratou a França como uma sociedade atípica, perdida no tempo por manter a aposentadoria aos 62 anos e por não abrir mão da semana de 35 horas conquistada com muita luta há 25 anos. Contra esse tipo de discurso o movimento argumenta e boa parte da sociedade está convencida do óbvio: que a manutenção de uma idade de aposentadoria nesses patamares e de uma semana de trabalho menor podem ser financiadas por um imposto sobre a riqueza. Além disso, a causa mobilizou muitos jovens, que enxergam possíveis vagas de emprego. Em suma, emerge uma solidariedade política entre trabalhadores e juventude.

É fato que por todo o mundo as condições de vida e trabalho estão se deteriorando e a realidade é a mesma: preços altos e salários cada vez mais baixos, precariedade e flexibilidade nas relações de trabalho, metas exorbitantes a serem cumpridas, pessoal insuficiente para trabalhar na maioria dos setores, deterioração dos espaços de moradia e estudo.

“O que é preciso é chegar a uma organização econômica que destrua a existente fazendo outra existir. O que significa que a crítica ao capitalismo é comunista ou nada.” — Alain Badiou

Uma vida cada vez mais dura e sem perspectiva, especialmente para a juventude. Os ataques contra o proletariado mundial não vão cessar. A “crise econômica” global continuará a piorar. Para sair dela na arena internacional do mercado e da concorrência, a burguesia de cada país imporá condições de vida e trabalho cada vez mais insustentáveis ao proletariado, invocando a “solidariedade com a Ucrânia” ou “o futuro da economia nacional”.

Diante do sistema capitalista que mergulha a humanidade na miséria e na guerra, na competição e na divisão, cabe ao proletariado oferecer outra perspectiva, recusar esses “sacrifícios”, desenvolvendo uma luta massiva e unida provando que um outro tipo de sociedade é possível. O proletariado no Brasil viveu situação semelhante à dos franceses e perdeu: aposentadorias dilapidadas em reformas consecutivas, sendo a mais nefasta a aprovada em 2019. É fundamental extrair uma lição real dessas lutas.

Divididos somos mais fracos. É preciso que o proletariado se conscientize que somos uma única classe, e que quanto maior for a luta, maior será a chance de vitória. É fundamental organizar a luta autônoma do proletariado, sem deixar se controlar pelos sindicatos, os autodenominados “especialistas” em organização e buscar apoio e solidariedade para além da própria corporação, empresa, setor de atividade, cidade, região ou país. O internacionalismo tem que estar inoculado em nosso sangue. É uma necessidade vital para o proletariado retomar o protagonismo da história e se recolocar na cena pública da política mundial defendendo os seus interesses de classe. Que as manifestações na França, sirvam como um chamado à luta. Acabemos com o capitalismo, antes que ele inviabilize a vida humana.♟