A Revolução Russa de 1905 está completando 120 anos. Nela foi forjada a primeira forma autônoma de organização do proletariado na Rússia. Para homenagear essa conquista, o BB traz nesse mês do internacionalismo proletário uma edição histórica que remonta ao seu contexto. Uma Rússia efervescente na qual a classe proletária soube aproveitar o momento de insatisfação de uma grande massa camponesa, transformar um levante espontâneo reivindicatório numa luta política e ensaiar o seu papel histórico de guiar a humanidade para um mundo sem classes. Infelizmente, ainda não tinha força suficiente para concluir a sua tarefa, mas foi uma experiência memorável. Além disso, e não menos importante, esse acontecimento permite identificar a ascensão de uma nova classe: os gestores.
O contexto pré-revolucionário
A Rússia tsarista vinha passando por lutas internas entre as classes dominantes – nomeadamente aristocracia, burguesia industrial e grandes proprietários de terra contra uma intelectualidade burguesa, por essência burocrata, a incipiente classe dos gestores dos zemstva e dumas – desde o final do século XIX. A constituição desse capitalismo russo atrasado se iniciou poucos anos após a abolição da servidão, quando o tsar Alexandre II criou os zemstva, em 1864 (mais tarde as dumas nas cidades). Eles eram órgãos de autogoverno encarregados de administrar, nas zonas rurais e demais regiões não alcançadas pelo poder do tsar, assuntos como educação e saúde pública, infraestrutura e questões agrárias. A burguesia em si, reacionária, era contrária à democratização desses organismos, apesar da intelectualidade liberal estar a favor, impulsionada pelo ideário da democracia experimentada nos países anglo-saxões. Para ganhar força, esses liberais russos se aliaram ao Partido Socialista-Revolucionário (SR), uma importante organização de base camponesa. Nos anos antecedentes a 1905 os debates mais acalorados nos zemstva tratavam do sistema de votação e, justamente, da reforma agrária.
Vale ressaltar que o que estava em jogo não era se haveria a reforma agrária, mas como a burguesia organizaria a distribuição das terras entre, não somente os sem terra, como também para aqueles com propriedades menos favorecidas. Além disso, era discutida a abolição das dívidas dos camponeses e se os latifundiários seriam ressarcidos de alguma forma pelas terras entregues aos camponeses. A forma como se daria a exploração da terra também estava em debate: se coletiva através das já tradicionais propriedades comunais ou de forma individualizada. Tudo isso estava em pauta não em organizações autônomas da classe, mas nos zemstva, organismos com maior representação camponesa, além da intelectualidade burguesa.
Enquanto isso, em 1903, a Social-Democracia se dividia entre bolcheviques e mencheviques dentro do POSDR numa disputa de diferentes táticas na tentativa de controlar o movimento operário. Enquanto os mencheviques, liderados por Plekhanov e Martov, defendiam a criação de sindicatos e eram contra a participação em qualquer governo revolucionário, os bolcheviques rejeitavam as formas legais de agitação, pregavam a insurreição e demandavam o confisco de todas as terras que não estivessem nas mãos dos camponeses. A liderança de Lênin fazia parecer que era uma escolha do partido, quando na verdade se tratava de adequar às necessidades dos camponeses para conquistar o apoio dos SRs.
“Os conselhos operários constituem a forma de auto-governação que substituirá, no futuro, as formas de governo do velho mundo. Não para sempre, bem entendido. Nenhuma destas formas é eterna. Quando a vida e o trabalho em comunidade constituem uma maneira normal de existir, quando a humanidade controla inteiramente a sua própria vida, a necessidade cede o lugar à liberdade e as regras estritas de justiça estabelecidas anteriormente convertem-se num comportamento espontâneo. Os conselhos operários constituem a forma de organização deste período de transição durante o qual a classe operária luta pelo poder, destrói o capitalismo e organiza a produção social” — Anton Pannekoek
A Revolução Russa de 1905
Apesar de datada em 1905, o estopim da Revolução se dá em dezembro de 1904, a partir da comoção nacional proveniente da capitulação das tropas russas frente ao exército japonês em Porto Artur. A demissão de 4 líderes sindicais em São Petersburgo inflama ainda mais o ânimo do proletariado e em janeiro de 1905 é deflagrada a Greve Geral. Porém, a classe ainda incipiente, sem histórico de lutas e trabalho de base autêntico, vai ao Palácio de Inverno com cartazes que retratavam uma idolatria ao tsar e a esperança de que ele se sensibilizasse pelas súplicas e as atendesse, de modo a resolver a miséria e a fome pela qual passava o proletariado e os camponeses russos. A resposta veio no episódio que ficou conhecido como “Domingo Sangrento”, em virtude do contraste do sangue vermelho dos operários contra a neve branca do inverno russo.
Assim foi forjada a maior conquista do proletariado russo auto-organizado: a ferro e sangue nascia o primeiro soviet. Este foi formado pelos operários que chegavam de trem à capital russa, encarregados de entregar às famílias das vítimas os fundos arrecadados na greve. Nesse momento o proletariado russo perdia a sua ingenuidade. Libertos da fé no absolutismo dos monarcas russos, o proletariado passa a se identificar enquanto classe autônoma, com pautas suas, que iam desde a jornada de 8 horas até o controle da produção. Essa autonomia proletária conquistava a adesão de outros estratos sociais, como no motim dos marujos do encouraçado Potemkin. No mês de maio, operários e operárias criam o segundo soviet, formado por delegados grevistas de Ivanovo-Voznezensk, na região metropolitana de Moscou.
No outono ocorre a Revolução de 1905 propriamente dita, quando uma greve de tipógrafos de Moscou se espalha para São Petersburgo, ganha a adesão dos ferroviários e se estende para todo o país. O pedido é de sufrágio geral e a eleição de uma Assembleia Constituinte. Os soviets de delegados de São Petersburgo são retomados e logo seu exemplo se espalha pelos maiores centros industriais.
Em resposta à brutal repressão, os soviets manifestaram outra característica da classe: a solidariedade contra os fuzilamentos dos que estão em luta. Ainda assim, amotinados do Kronstadt e do ex-Potemkin são bombardeados, juntamente com os soviets que resistem em todo o país. A matança do tsar leva a quase um milhão de mortos em Moscou, com os membros remanescentes enviados para o exílio na Sibéria ou na ilha de Sacalina. Restava o olhar de dignidade dos presos que alcançaram o feito histórico da autonomia da classe.
“O soviete de São Petersburgo, que dura 90 dias, reúne delegados de empresas, na base de um delegado para quinhentos assalariados, e atua como o verdadeiro governo da cidade, imprimindo seu jornal oficial, repudiando os empréstimos governamentais, instaurando a jornada de oito horas de trabalho, criando suas milícias armadas.” — Maurício Tragtenberg
Os cães ladram e a caravana passa
Pouco tempo após a repressão das agitações, a monarquia cria a Duma, no início de 1906, como organismo parlamentar de fachada, ao inaugurar o que mesmo os liberais chamam de pseudo-democracia russa, haja vista o grande poder que o tsar Nicolau II manteve. Apesar da grande burguesia e latifundiários permanecerem ao seu lado, foi uma tentativa frustrada de acalmar os ímpetos liberais dos burocratas e torná-los aliados. Mas a pequena-burguesia e essa classe gestora nascente logo percebem a gradual perda de poder da Duma, habilmente contornada pela monarquia, e passa a se aproximar dos grupos insurrecionais de base camponesa, como os SRs. A falha do imperador em atender as necessidades das massas de camponeses e proletários, por vezes passando fome, somada ao autoritarismo crescente, levaria em 1917 os gestores a preferirem se aliar com os bolcheviques para alcançar o fim da monarquia, numa frente ampla.Infelizmente, o que ficou para as gerações posteriores – em grande parte por influência do taticismo bolchevique – foi muito mais uma transposição mecânica dessas famigeradas frentes amplas, que serviram a um propósito histórico muito específico, na Revolução de 1917. A grande conquista da classe, a formação dos soviets, ficou esquecida. Não à toa foram aparelhados e implodidos após 1917.♟