Tráfico de drogas ilícitas e capitalismo

Tráfico de drogas ilícitas e capitalismo

A recente intervenção da União Federal no estado do Rio de Janeiro, sob o argumento de retomar o controle estatal de territórios dominados pelo crime organizado (traficantes de drogas ilícitas) e dar segurança para a população fluminense, pode se constituir em fonte de questionamentos para a ação presente e futura.

Sobre a intervenção federal em si, basta ter em conta que a presença do exército no estado do Rio de Janeiro é uma tentativa desesperada do cada vez mais encurralado Michel Temer, apoiado na mídia corporativa, recuperar a imagem do MDB fluminense, cujos principais nomes estão afastados ou presos, e criar um mote para sua candidatura à presidência nas próximas eleições. A experiência mexicana iniciada em 2006 se repete como tragédia no Brasil, e tende a aumentar o número de homicídios e os casos de violações de direitos civis e políticos básicos.

Quanto à análise de fundo, o primeiro aspecto é a necessidade de adotarmos um conceito de ‘crime organizado’ enquanto atividade empresarial cotidiana, que deve ser tratada sem qualquer moralismo, já que se diferencia das demais por fornecer produtos ou serviços proibidos por lei e pela sua consequente truculência acima da média. O seu grau de organização é inversamente proporcional à violência empregada: os grupos com melhor financiamento conseguem reduzir a concorrência (chamada de “guerra de facções”) e, consequentemente, diminuir o emprego de violência, tornando mais íntimas as conexões entre crime organizado e capital legalizado. Em São Paulo, é pública a referência à organização do PCC como principal responsável pela relativa redução da violência na cidade. Porém, PCC, CV e outros expressam – ainda de modo pouco desenvolvido – fatores de concentração do capital criminal sem ocupar, por enquanto, um lugar entre as grandes tendências de desenvolvimento do capitalismo contemporâneo no Brasil. Nesse sentido, possivelmente são os EUA o melhor exemplo de concentração do capital criminal em conexão com as empresas legais.

[…] quando se leem os textos políticos de Marcola [líder do PCC] e quando se conhecem as tentativas desta organização para ser considerada como um movimento social, penso que o PCC constitui, no meio criminal, o equivalente das Empresas com Responsabilidade Social.” — João Bernardo

Acoplado ao crime organizado está a sua função de atuar como um subproduto do Estado Capitalista. O tráfico movimenta as indústrias bélica e de segurança e leva a repressão e a vigilância estatal às periferias; possui força de trabalho recrutada nos setores mais precarizados do proletariado e os submete a condições piores que a escravidão; valendo-se do modo como o conjunto do sistema funciona, é uma alternativa sedutora para jovens sem qualificações escolares formais, embora exija o seu próprio rol de qualificações; financia os setores da repressão estatal que atuam na ilegalidade (milícias); favorece o enriquecimento das máfias que controlam a distribuição e venda (isentas de impostos e de obrigações previdenciárias e trabalhistas). Logo, é em todos os seus fundamentos e atos um inimigo permanente da luta proletária.

Também é importante destacar a dinâmica da produção, circulação e consumo das drogas consideradas ilícitas. Longe de ser uma novidade do século XXI, é histórico o consumo de substâncias psicoativas. Há milhares de anos a humanidade conhece os efeitos de determinadas substâncias de origem vegetal e as aplica com diferentes fins: medicinais, ritualísticos ou lúdicos. Algumas dessas substâncias atingiram um grau de normalidade tal que em muitas ocasiões se esquece de sua natureza narcótica e são situadas num nível diferenciado, exemplos como o álcool na cultura ocidental, que, além de droga, é considerado alimento, bem cultural, motivo de festejo e até elemento identitário. Outro exemplo é a folha de coca nos Andes sul-americanos, ou, em menor escala, o tabaco, a cafeína e o açúcar.

Nos tempos atuais, a decisão sobre se uma substância será legalizada ou criminalizada nada tem a ver com seu potencial lesivo à saúde humana, obedece apenas aos interesses do capital, expresso pela articulação entre os Estados de capitalismo avançado e monopólios empresariais, tais como indústria farmacêutica, de bebidas alcóolicas, etc. Basta perceber que o álcool e o tabaco geram mais mortes, direta e indiretamente, do que qualquer droga ilícita. Ou então analisar a recente epidemia de dependência de medicamentos opiáceos (legalizados) nos EUA. Além disso, é curioso tomar como exemplo as três principais substâncias proibidas no mundo (maconha, cocaína e heroína) e perceber que são cultivadas em grande escala em países periféricos do capitalismo, localizados na América Latina e Ásia, de modo que a clandestinidade desse cultivo é muito cômoda ao capitalismo de ponta, que apenas consome e reprime.

Quanto ao consumo, percebe-se um aumento exponencial nas últimas décadas, que se deve às transformações do capitalismo e dos efeitos sociais a ele associados (individualismo, concorrência, consumismo), típicos das sociedades de capitalismo desenvolvido. A narcose passa a ser a via de escape a uma vida resumida a jornadas de trabalho estafantes/alienantes, com breves espaços de lazer intercalados ou à própria ausência de sentido para setores das camadas médias. Assim, diferentes drogas são empregadas seja como estimulantes para superar o cansaço, seja como fornecedoras de uma felicidade instantânea e artificial suficiente para preencher os períodos de folga. Desse modo evita-se que a consciência da frustração e da exploração permita questionar a justiça do sistema social, político e econômico no qual vivemos.

O crack, cocaína e heroína são tudo que o capitalismo tem para oferecer aos jovens que não emprega, aos emigrantes que expulsa, às minorias que discrimina ou aos trabalhadores que destrói.” — Osvaldo Coggiola

Articulado com o aumento exponencial do consumo está o seu uso pelo Estado na tentativa de minar lutas anticapitalistas, como ocorreu no final da década de 1960 com os Panteras Negras e em outros momentos históricos em que o acesso às drogas foi facilitado e não dificultado pelo Estado. Isso aconteceu quando o nível de frustração e o perigo de conflito social ameaçavam sair do controle das classes dominantes. Para a polícia o lema é “venda quem eu quiser, e me diga quem consome”, pois é praticamente impossível conseguir drogas fora dos circuitos habitualmente controlados e sob intervenção da polícia. Daí que, cedo ou tarde, o Estado terá a identidade de todos os consumidores de drogas ilegais e poderá, a seu bel-prazer, estabelecer uma rede de chantagens em troca de evitar denúncias ou mesmo em troca da própria substância.

Por tais fatores, na perspectiva de um proletariado anticapitalista, denunciar a hipocrisia da ilegalidade, sem, com isso, incentivar o consumo, dado seu conteúdo amortecedor das tensões sociais – são duas faces da mesma moeda. Transformações revolucionárias são incompatíveis com gangsterismo e tóxico-dependência, pois deve haver coerência entre os comportamentos vitais individuais e os objetivos da luta coletiva por uma nova sociedade.

Afinal, consciências forjadas na luta contra as alienações e ideologias que o capitalismo diariamente tenta nos impor, direta e subliminarmente, devem possuir a capacidade de demonstrar que é possível transformar a sociedade em um mundo melhor, no qual serão superadas as atuais frustrações que impedem que a classe proletária se humanize na plenitude de modo a libertá-la do uso escapista ou compensador das drogas, restringindo seus usos a finalidades curativas ou recreativas.♟