Uma leitura sobre a luta feminista
Rio de Janeiro - Mulheres fazem ato contra a cultura do estupro na igreja da Candelária, centro do Rio (Tomaz Silva/Agência Brasil)

Uma leitura sobre a luta feminista

Não é fácil estabelecer uma definição para o que seja feminismo. Pensado como movimento, pode ser entendido como um processo que se constrói no cotidiano e que vislumbra como ponto de chegada a igualdade entre os seres humanos. Como qualquer outro movimento que pretende a transformação, ele não é homogêneo e é constituído de avanços, retrocessos, erros, acertos e também contradições, podendo, por vezes, serem observados objetivos até mesmo antagônicos entre grupos que se auto intitulam feministas.

É preciso ter claro que as questões de gênero nem sempre estão interligadas às questões de classe, pois são coisas distintas. Um homem pode ser um trabalhador explorado que ainda assim terá privilégios por ser homem (embora não tenha os privilégios que são exclusivos das classes dominantes). Existem, contudo, opressões e explorações que só acontecem com as mulheres. Quando se diz que as mulheres devem ocupar seus lugares em todos os âmbitos da vida (no âmbito político, em qualquer área de trabalho, na produção científica, etc.), não se tem a ilusão de que isso irá transformar radicalmente a sociedade, mas fará com com que esta seja uma expressão mais fidedigna do real uma vez que mulheres representam 52% da população mundial – uma maioria que ainda hoje recebe o tratamento e o rótulo de minoria. Assim sendo, algumas pautas do feminismo serão pluriclassistas, e nem por isso serão reacionárias (aborto, violência, divisão sexual do trabalho, etc.). Reconhecer que muitas reivindicações do feminismo perpassam as classes (ainda que os efeitos práticos de eventuais conquistas possam ser diferentes entre elas) é totalmente diferente de defender ou apoiar uma candidata ao parlamento apenas pelo fato dela ser mulher ou imaginar que uma gestora do capital terá uma prática diferente da de um gestor. Da mesma forma que um homem, uma latifundiária expulsará quem ocupar suas terras e uma policial feminina reprimirá os movimentos sociais.

Apesar das conquistas históricas dos movimentos feministas, ainda nos encontramos em um estágio muito inicial no que diz respeito à real emancipação das mulheres e estabelecimento de igualdade entre todas as pessoas, na medida em que nascemos e morremos em uma sociedade com relações de poder assimétricas. O machismo e o sexismo são amplamente difundidos e enraizados na sociedade e ainda estão longe de ser erradicados. Das relações afetivas às de trabalho, nos transportes coletivos, nas ruas, em relação à aparência física, mulheres se deparam cotidianamente com situações em que são subjetiva e objetivamente desencorajadas a seguir a sua própria vontade. A opressão de gênero vem muitas vezes justificada com argumentos “culturais”, quando na realidade a cultura não tem o poder de constituir as pessoas, pelo contrário, é um produto da relação dos seres humanos entre si, apreendido, constituído e modificado pela prática. Se uma humanidade inteira de mulheres tem sido afastada do protagonismo da vida cultural, sendo relegada à subalternidade, isso é prova mais que suficiente de que esta “cultura” precisa ser mudada.

A verdadeira emancipação da mulher deve deixar de lado a absurda noção de que existe um dualismo entre os sexos ou que o homem e a mulher representam dois mundos antagônicos.” — Emma Goldman

Dentre as idas e vindas do movimento feminista e suas inúmeras tendências, há algumas que são particularmente nocivas. Aquelas que tentam imputar a todo homem a potencialidade de um estuprador e as que buscam identificar a mulher como portadora de algum tipo de sensibilidade especial. Em ambos os casos o que está deturpado é a própria política do feminismo – que busca a ampla igualdade entre todos os seres humanos – uma vez que uma imputa ao homem uma característica naturalmente predadora e a outra revela uma qualidade reservada apenas às mulheres. Tal visão maniqueísta tende a relacionar as mulheres apenas com características positivas e os homens às características negativas. O grande problema é que estas posições por vezes permeiam as lutas e os movimentos sociais fomentando sectarismo em relação aos homens e ilusões em relação às mulheres.

A partir da afirmação da superioridade feminina por um lado e garantida a exclusão dos homens por outro, o foco principal se torna a substituição do homem pela mulher em posições de poder no Estado, nas organizações e na sociedade em geral. Cria-se uma ilusão de que sem a alteração profunda da sociedade é possível chegar a um mundo de justiça e igualdade apenas pelo fato do comando estar com mulheres. Nada mais enganoso. A possibilidade de um capitalismo ecológico, amável, inclusivo, onde todos e todas terão suas vidas “bem cuidadas” inexiste. Não adianta “feminizar” as instituições hierárquicas. A luta por solidariedade, liberdade e autonomia de todos os seres humanos precisa ser entre iguais – homens e mulheres.

O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.” — Simone de Beauvoir

Com estas compreensões é importante reforçar as parcelas do movimento feminista que também se ocupam da luta anticapitalista. No capitalismo a exploração dos trabalhadores extrapola os locais de trabalho e invade sua casa. A mulher cozinha, lava, passa, cuida dos filhos, dos idosos da família e executa uma série de tarefas domésticas que garantem a reprodução da força de trabalho para as classes dominantes – tudo isso sob a forma de trabalho não pago. Ou seja, os salários podem continuar num nível baixo pois parte significativa da reprodução da força de trabalho está garantida gratuitamente. Este é o chamado “trabalho invisível”, considerado muitas vezes como “improdutivo”. Em geral, a mulher é a primeira a acordar e a última a ir dormir, sobrecarregada de afazeres, o que não raro compromete sua saúde e a leva a se alienar progressivamente da sua condição de classe. Se o tempo livre já é algo escasso na vida do proletariado como um todo, torna-se inexistente para boa parte das mulheres dessa classe.

Dessa forma, se o movimento não deve esperar a resolução mágica de suas pautas que supostamente viria com a superação do capitalismo, tampouco pode se descolar da materialidade das relações de trabalho desta sociedade, pois a luta contra a exploração entre sexos, como se argumentou, é simultânea à luta contra a exploração entre classes sociais. É incoerente comemorar como se fosse uma vitória a maior representatividade de mulheres em posições gestoriais que organizam e exploram outras mulheres da classe proletária. Assim como celebrar os simbolismos de artistas femininas que fazem referências às lutas anticapitalistas do passado enquanto gerem marcas de roupa transnacionais que subjugam trabalhadoras de países da periferia do sistema.

Só é possível construir uma sociedade igualitária baseando-se em perspectivas que lançam luz sobre a realidade e suas contradições concretas (o oposto do que fazem as ideologias identitárias, tema da edição nº11 do BB) e com enfrentamentos que já carregam em suas práticas as formas de igualdade da sociedade futura, isto é, integrados por indivíduos com total autonomia sobre suas necessidades e vontades, decidindo coletivamente os rumos de seus movimentos. Enquanto as lutas pelo fim das desigualdades ignorarem a separação hierárquica que estrutura as relações da sociedade atual, estarão fadadas a ter suas pautas recuperadas pelas classes dominantes, que as transformarão em novos mecanismos de controle, portanto, serão limitadas a contribuir para a sofisticação do mundo capitalista e suas formas de exploração.

Com base em tais concepções, torna-se possível formular alguns critérios que possibilitem identificar uma luta feminista pela igualdade entre gêneros e que busca romper com relações de exploração capitalistas: a) considerar que a cultura não é estática e nem a biologia determinante para a caracterização do ser humano em sociedade. Nesse sentido, o movimento feminista anticapitalista não deve se basear em abstrações apriorísticas que têm o homem como essencialmente mau e a mulher como essencialmente boa; b) considerar que não existe mulher em geral, apenas mulheres concretas que vivem na sociedade concreta. Logo, a luta deve se comprometer em analisar o papel da mulher em sua especificidade na reprodução capitalista, compreendendo ao mesmo tempo e consequentemente a importância da perspectiva anticapitalista; c) observar a forma como o movimento se organiza. Se separa quem manda de quem obedece, mesmo que constituído por membros da mesma categoria identitária, só terá como resultado a reprodução das desigualdades sob novas configurações. Assim sendo, a organização de movimentos pela igualdade entre pessoas deve combater contradições internas que se materializam em relações de poder.

Esta edição tratou especificamente da necessidade de fundir a luta feminista com a luta anticapitalista, pois entende-se que separá-las dificulta o fim das opressões. Porém, desta perspectiva, outros temas que permeiam esta luta serão abordados em edições futuras, como a questão do aborto, do assédio e da violência e trabalho domésticos.♟